O Cangaceiro – Uma História do Livro “O Baú das Histórias Inusitadas”

Lampiao O Cangaceiro - Uma História do Livro "O Baú das Histórias Inusitadas"

O Cangaceiro

O Cangaceiro

Se havia neste mundo alguma coisa de que a velha Normélia se orgulhava era do avô, ou melhor, era da morte de Juca Pestana ocorrida ao lado de Virgulino Ferreira da Silva, o célebre Lampião. Ela costumava mostrar para todos uma velha fotografia amarelada pelo tempo e já carcomida nos cantos em que os dois cangaceiros apareciam juntos, devidamente paramentados com seus chapéus de couro em formato de meia-lua, as cartucheiras trazidas verticalmente de encontro ao peito, a jabiraca (lenço no pescoço), alpercatas, bem como cangalhas de couro sobre as calças, e o inseparável rifle Winchester. Contudo, o que se destacava, eram os óculos redondos, como duas luas cheias, no rosto do capitão do cangaço.

Já com oitenta e seis anos, gostava de relembrar e contava a história para os filhos, netos e para quem se dispusesse a ouvir:

— Juca, meu avô – dizia Normélia – foi morto pelos homens da volante, não lembro bem se foi em 32 ou 33. Eu era muito nova, mas minha mãe contava que ele tomou um tiro que era pra Lampião, disparado por um praça. Diziam que cangaceiro valente como meu avô só mesmo Lampião. E tem mais…

A partir do episódio, as histórias se multiplicavam e a suposta saga do cangaceiro Juca Pestana pelo sertão brasileiro se enriquecia de detalhes heroicos. Mas, voltemos no tempo, precisamente para Serra Talhada, sertão de Pernambuco, em 1916:

Os irmãos Ferreira, Antonio, Levino e Virgulino levam uma vida difícil no sítio Passagem das Pedras. Virgulino dos três é o único alfabetizado, usa óculos para ler (características incomuns para a região sertaneja e pobre onde morava), e é um excelente artesão, ofício que aprendeu com Justino Botaroupa, quando fez amizade com o também aprendiz, Juca Pestana. O apelido Pestana foi dado a Juca, porque, invariavelmente, tirava um cochilo depois do almoço.

Uma pendenga se arrastava entre os irmãos Ferreira e o vizinho Zé Saturnino. Uma acusação de roubo de bodes levada ao inspetor da comarca, por Domingos Rodrigues, homem ligado a Zé Saturnino, obriga os Ferreiras a pagar uma indenização em dinheiro ao reclamante. Após esse incidente, uns chocalhos dos Ferreiras (usados como marca nos animais) são vistos em três vacas pertencentes a Saturnino que os acusa de ladrões. Virgulino, revoltado, mata nove reses do desafeto.

Esta guerra se arrasta por alguns anos, com emboscadas, tiroteios e mortes de ambos os lados. Em uma noite sem lua, Virgulino com mais alguns cabras que se juntaram a ele, emboscam José Nogueira, tio de Saturnino. Os homens que fogem e tentam se esconder encobertos pela noite, são perseguidos e mortos por Virgulino que carrega um lampião. Daí em diante, o futuro cangaceiro nunca mais se livrará do epíteto, e será conhecido, através da história, por Lampião, o rei do cangaço.

Juca Pestana, apesar de sua amizade com Lampião, mantém-se à parte nas confusões, sem tomar partido.

Lampião e seus irmãos são duramente perseguidos por Saturnino. Zé Ferreira, o patriarca da família, considerado um homem calmo e sensato, na tentativa de evitar mais conflitos que possam levar à morte seus filhos, faz um acordo com Zé Saturnino e vende suas terras, indo morar na fazenda Poço do Negro, em Floresta – PE.

Todavia, pouco tempo depois, Saturnino quebra o acordo de não ir à cidade onde moram os irmãos, e é emboscado. Um dos seus primos é baleado e no dia seguinte, ele juntamente com o tenente Lucena e seus homens, cercam a fazenda Poço do Negro, matam o pai e a mãe de Lampião, que, perseguido, foge para Água Branca, nas Alagoas. Lá se vai o ano de 1920, e Virgulino conta com 23 anos. A partir daí, por dezoito anos, o cangaço terá o seu rei e o sertão viverá oprimido sob o mando do seu terror.

1928 (janeiro): Juca Pestana têm três  filhas, a mais velha com seis anos e sua mulher, Nazinha, carrega mais um no bucho. Habilmente, evita se envolver nas várias desavenças ocorridas ao seu redor. Mas, Juca Pestana tem um defeito, é um inveterado mulherengo. Mulato alto, bonito, de boa conversa, perde a conta dos “chifres” que distribui na cidade. Por mais de uma vez, quase foi flagrado por um companheiro ou marido de alguma espevitada.

Nazinha, que é filha do coronel Hortêncio Soares (que, aliás, foi contra o casamento), pra não dar o braço a torcer ao pai, aguenta calada todas as safadezas do marido. Porém, morre de ciúmes de Vera Rosa, uma morena de dar água na boca e de desnortear os sentidos de qualquer cabra avisado ou desavisado. Só uma coisa não aceita, diz para as amigas:

— Juca já me desgostou muito. Só não aceito ele me botar os cornos com Vera Rosa. Se fizer… Capo ele!

De fato, para Nazinha era imperdoável que o marido a traísse com uma mulher mais bonita que ela. Porém, ninguém foge da sua natureza, e no caso de Juca e Vera Rosa, se um fosse a pólvora o outro seria o rastilho.

Confirmada a traição do marido com a bela morena, Nazinha procurou o pai e chorosa, implorando aos gritos mil perdões, dizendo que sim, que o pai era que tinha razão, pediu para que Juca fosse capado.

O coronel Hortêncio ficara magoado com a filha, mas do genro, mulato pobre que teve a ousadia de levar sua menina em casamento, tinha ódio. Chamou três dos seus homens e diante de Nazinha ordenou:

— Esta noite vocês vão pegar o Juca, e arrancar as bolas do bicho. Depois, vocês tragam os trastes dele pra mim. Entenderam?

Todavia, não conseguiram encontrar o homem, e durante algum tempo, em Serra Talhada, não se teve notícia de Juca Pestana. Uns diziam que o coronel mandou matá-lo, contudo, um par de anos depois, os boatos seriam desmentidos.

Março de 1928: Lampião chega à pequena cidade de Jati no Ceará, e o coiteiro (nome dado aos que abrigavam cangaceiros) Antônio da Piçarra o aloja em sua fazenda.

Um sol escaldante castiga a fazenda Batoque, bem como todo sertão cearense. Embaixo de uma bica, ao lado de uma cisterna, Antônio da Piçarra, Lampião e mais quatro dos seus homens se refrescam, quando são interrompidos por um tropel de cavalos, gritaria e risadas. Na ponta de uma corda amarrada na sela de um cavalo e correndo aos tropeções, está um homem já bastante ferido e sujo. Barbado, traz os cabelos compridos presos a uma fita.

— Que peste é essa? – pergunta o chefe do cangaço.

— Capitão, esse cabra disse que é seu amigo. Mas, Doda o pegou amoitado e só num fez ele, porque o sujeito gritou por seu nome. – responde o cangaceiro Sabino Gomes.

Pegando uma peixeira que estava fincada num banco de madeira, Lampião se aproxima e puxando-o pelos cabelos, encosta a arma no pescoço do homem, que desesperadamente, mas gaguejante, exclama:

— Sou eu Virgulino! So… Sou eu… Juca Pestana!

— Que diabos! – explode Vassoura (irmão de Lampião). – É Juca mesmo?!

Mais tarde, já banhado e alimentado, Juca se explica para Virgulino:

— … Então, Iracy contou pra Vera Rosa que os home do pai de Nazinha vinha pega eu, e Vera veio correndo contar. Fui perseguido, mas João Talisca mim escondeu dentro de um poço no seu sítio e por um trequinho não morri afogado. Depois fui pra Pombal (Paraíba) porque tinha notícia de que você estava lá. Quando cheguei vi uns home de Sabino e me mandei pra Cajazeiras. Lá, um mascate disse que você estava em Jati. Fui perguntando e vim para aqui. Já tem cinquenta e três dias que estou te procurando. Peguei muito sol, passei fome, meus pé tá cheio de bolha, mas agora quero ser cangaceiro.

— Juca – diz Lampião –, você pode se juntar ao bando que não sou homem de deixar um companheiro na mão, mas vai ficar como artesão até provar seu valor. O que me preocupa é que se você nos encontrou, algum rastejador das volantes pode tá preparando uma botada (ataque surpresa) pra gente. Hoje é sábado, quarta-feira a gente vai pinotear pra Bahia encontrar com Gato e os outros cabras, que tem gente lá de confiança.

27de março de 1928: Lampião e seus cabras ainda estão na fazenda do coiteiro. Em volta de uma fogueira estão reunidos alguns dos cangaceiros, quando gritos de alerta se ouvem:

— Os macaco! Os macaco! Botada! Botada!

Os gritos logo são seguidos por tropel de cavalos, tiros e correria. O cangaceiro Sabino Gomes é atingido por um tiro na boca. Os homens de Virgulino só não são mortos porque o capitão sempre mantém armada uma linha de defesa, e uma rota de fuga preparada. A volante está em grande número e Lampião só têm oito homens, pois o resto está com Gato na Bahia. Com dificuldade conseguem fugir sendo perseguidos pela polícia. Antônio da Piçarra é preso.

Duas semanas depois, ainda perseguidos pela polícia, os cangaceiros estão no sertão Pernambucano e segue em direção à Bahia. Ninguém aguenta mais ver o sofrimento de Sabino Gomes, que com a boca destruída pelo tiro não consegue falar ou se alimentar. Após rápido proseio com Vassoura e Mergulhão, Lampião ordena que Juca Pestana mate Sabino para acabar com o sofrimento do cangaceiro.

Aquela ordem serve também para provar o valor de Juca. Mas o artesão, com arma na mão e sob o olhar de todos, dispara numa tremedeira só e mija nas calças. Lampião olha para Mergulhão, que entendendo se aproxima de Sabino e lhe dá um tiro na cabeça. Em seguida os homens passam a cantar. A cantoria é como choram o companheiro morto.

Olê muié rendera

Olê muié rendá

Tu me ensina a fazê renda

Que eu te ensino a namorá

Lampião desceu a serra

Deu um baile em Cajazeira

Botou as moças donzelas

Pra cantá muié rendera

As moças de Vila Bela

Não têm mais ocupação

Só que ficar na janela

Namorando Lampião

Quanto a Juca Pestana, teve sorte, pois a cangalha de couro impediu que fosse percebida a sua incontinência urinária. Entretanto, selou seu destino: jamais passou de um artesão, e seguiu com Lampião até 1930.

Santa Brígida, Bahia, dezembro de 1929. Maria Gomes de Oliveira é conhecida por Maria Bonita, pois seu tipo físico (baixinha, rechonchuda, olhos e cabelos castanhos) é muito apreciado pelos homens. É casada com o sapateiro Zé Neném, com que vive às turras. Em uma das brigas com marido sai de casa e vai para a fazenda dos pais, onde está Lampião que é amigo da família. A mãe de Maria havia confidenciado a lampião, que em sua filha tinha uma admiradora. Quando os dois se encontram Virgulino se apaixona e é correspondido. Pouco tempo depois vão viver juntos, não sem antes Lampião dá sete tiros no ex-companheiro de Maria, que não morre, mas perde um olho.

Juca Pestana conhece Maria Bonita no mesmo dia, e resolve que vai lhe conquistar. A baixinha geniosa lhe desperta os desejos. Sabe que Maria já pertence a Virgulino, mas acha que a figura de certa maneira mirrada do rei do cangaço não é páreo para a sua. Esquece que o único machismo que impera entre os cangaceiros, é o de não aceitar cornos.

Juca inicia um cerco à Maria Bonita. Toda vez que julga não estar sendo observado, se aproxima da musa do cangaço. No começo a moça parece não entender suas intenções, mas o artesão faz questão de deixar claro e os rechaços só parecem incentivá-lo.

Chegamos ao ano de 1930. Por essa época, o jornalista de Aracajú, Lúcio Andrada, depois de alguns acertos, vai a Simão Dias, no Sergipe, entrevistar o capitão Virgulino, com ele segue o fotógrafo Dias Rocha.

No acampamento montado ao redor da cidade, Lampião após ter várias fotos suas e de seu bando tiradas é entrevistado. Juca aproveita o momento para ir à barraca de Maria Bonita e despejar seu charme venenoso, quando quatro dos cangaceiros o agarram, e o arrastam pelo pescoço.

Naquele momento o repórter pergunta a Lampião:

— Seu Virgulino, muitos o consideram um justiceiro. Mas, eu gostaria de saber que justiça é essa que mata homens e mulheres a torto?

— Olhe… Seu jornalista! – responde o rei do cangaço, com a voz calma que lhe é peculiar. – Uns morrem porque tem que morrer, outros porque merecem. Vou mostrar um exemplo de justiça. – E ordenando. –Tragam Juca!

Flanqueado por quatro homens, um cabisbaixo Juca Pestana é trazido à presença de Lampião e dos jornalistas. Quando o fotógrafo faz menção de tirar uma foto, Lampião ordena que não o faça.

— Esse homem – diz o cangaceiro apontando para Juca – traiu minha confiança e há muito tempo cisca pro lado de Maria. Tava aguardando a ocasião pra lhe dar a lição merecida. Agora vocês vão ver o que é a justiça do sertão.

— Virgulino! – geme desesperadamente Juca. – Mim perdoe!

— Seje home Juca! Você sabe que pro que você fez não tem perdão. Você vai ser fuzilado.

— Pelo menos…, atenda um último pedido. – implora.

— Pois faça! Não quero que digam que não atendi ao último desejo de um cabra.

— Quero tirar uma foto com tu pra ser entregue pra minha mulher e pro meus filhos.

— Devolvam a cartucheira dele e arma sem balas. – manda Lampião, em seguida se aproximando de Juca, ordena ao fotógrafo:

— Bata a foto!

No momento seguinte saca sua pistola Mauser e dá um tiro na cabeça de Juca Pestana.

Por ordem de Lampião, esse episódio nunca foi contado. Porém, a foto foi entregue para Nazinha, e é a mesma que a vovó Normélia anos depois, não mostraria com tanto orgulho se soubesse da verdadeira história.

Livros de Gil DePaula -- www.clubedeautores.com.br -- www.editoraviseu.com.br -- [email protected]

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