Muitas canções encantam por sua elaboração artística, instrumental, melódica ou harmônica. No entanto, há aquelas canções que fazem a soma ser maior do que as partes. Esse é o caso de “Há Tempos”, canção que abre o disco As quatro estações (1989) da Legião Urbana. Meia dúzia de acordes, compasso 4/4, uma melodia sinuosa que custa a crescer (mas que explode ao final da canção) e uma instrumentação para lá de simples.
Há muito que dizer de “Há Tempos”, como há muito que dizer do próprio disco As Quatro Estações. A banda, após o sucesso tímido do homônimo disco de estreia (1985), estourara com Dois (1986) e presenteava os fãs, em dezembro de 1987, com a antologia Que País é Este – 1978/1987, reunindo clássicos de seu passado punk – conhecidos por quem acompanhou o embrião da Legião (e do Capital Inicial), o conjunto Aborto Elétrico.
Os shows, então, eram uma explosão de adrenalina e rebeldia punk, reunindo, num mesmo espetáculo, petardos como “Que País É Este”, “Conexão Amazônica”, “Tédio (Com Um T Bem Grande Pra Você)”, “Geração Coca-Cola”, “Será”, “Química” e “Baader-Meinhof Blues”.
Não tardaria a que os instintos mais primitivos da plateia, canalizados pelo instrumental pesado e pelas críticas sociais das letras, irrompessem em verdadeiras manifestações de (auto)violência, ameaçando o próprio futuro da Legião Urbana – como se viu no fatídico e derradeiro show em Brasília, onde o conjunto jamais voltaria a se apresentar.
Pois bem, isolado em um quarto de hotel, Renato gravara uma lendária fita cassete intitulada Cocaine days. Ali estariam esboçados os novos rumos temáticos e estéticos da Legião Urbana, reorientando os álbuns vindouros para outros assuntos, além da crítica social que marcou a Legião Urbana.
Em verdade, as bases dessa nova orientação já estavam anunciadas no disco Dois, que representara, até então, o auge da elaboração instrumental e melódica da Legião, apresentando canções como “Acrilic On Canvas”, “Andrea Doria” e “‘Índios’”, numa direção criativamente mais ousada e interessante, que o punk rock que ainda se insinuava aqui e ali (“Metrópole” e “Fábrica”).
As quatro estações instalaria uma calmaria perene no repertório e na postura da Legião.
A gestação de As quatro estações foi lenta. Mesmo com as bases de Cocaine days, as canções (principalmente, as letras) demorariam a surgir. Passara-se 1988 e nada. A gravadora EMI-Odeon era complacente com o tempo exigido pela banda para produzir novo material, mas aumentava, cada vez mais, a sensação de que essa paciência se esgotaria a qualquer momento.
Para além de tudo isso, muitas emoções estavam à flor da pele: Renato Rocha, o baixista nos discos anteriores, acabara de ser expulso (ou auto-ejetado do conjunto, na visão de Dado), sobrecarregando os membros restantes na tarefa composicional e Renato; o vocalista-letrista não demoraria a se descobrir soropositivo. Com muito custo foram surgindo as primeiras bases instrumentais do disco.
A verdade é que apenas em 29 de outubro de 1989 a Legião disponibilizaria aos fãs o resultado da longa jornada iniciada após o show no Mané Garrincha, e concluída um ano depois.
Há Tempos
Agora, falemos de “Há Tempos”. A canção é iniciada com uma virada de bateria, que já de início expõe a sonoridade sessentista do disco. Os timbres soam propositadamente antigos; não são poucas as canções que, à Beatles da fase iê-iê-iê, são tocadas inteiramente com o chimbal aberto na bateria de Bonfá (é o caso de “1965 (Duas Tribos)”, “Meninos E Meninas”, “Sete Cidades” e a própria “Há Tempos”).
Ainda na introdução, apresenta-se um tema de teclados, que surgiria em outros dois momentos (nos versos “Já estamos acostumados / A não termos mais nem isso” e na estrofe final), acompanhado por um delicado dedilhado de guitarra, que perdura por toda a canção.
De cara, a pedrada: “Parece cocaína, mas é só tristeza, talvez tua cidade”. O ouvinte mais apressado poderia pensar que, se a ideia era afastar o niilismo punk que assombrara a Legião até então, Renato falhara miseravelmente. Mas algo está diferente. A letra não é mais tão direta quanto em composições anteriores, e chama a atenção sua elaboração em termos léxicos e gramaticais. Como ocorreria em outros momentos de As quatro estações, o coloquial “você” cede lugar ao rebuscado “tu”, o que é um álibi e tanto para Renato escrever alguns dos versos mais pungentes (e mais dolorosamente lindos) de sua obra: “Disseste que se tua voz tivesse força igual / À imensa dor que sentes / Teu grito acordaria / Não só a tua casa / Mas a vizinhança inteira.”
É nesse tom que “Há Tempos” fala do pathos da vida urbana na pós-modernidade: a virtude que perdemos, o fim das utopias (“Há tempos tive um sonho / Não me lembro, não me lembro”).
A descrença nas instituições (ao cantar “Já estamos acostumados / A não termos mais nem isso”). A perda de referências éticas (“E há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade”). O desencanto (“Há tempos o encanto está ausente”).
Renato impusera um caminho absolutamente original para a Legião, representando uma guinada em relação ao percurso anterior
A canção “Há Tempos” explora o campo harmônico de Ré Maior, alternando o próprio acorde de Ré Maior com Lá Menor, com algumas intervenções de Sol Maior na retomada do tema da introdução. No entanto, existem dois elementos que contribuem para desfazer a aparente monotonia harmônica da obra. Por duas ocasiões, de forma a sublinhar o texto da letra, ocorre a insurreição da sequência Sol Maior-Mi Menor: isso acontece nos versos “…herdeiros são / Agora da virtude que perdemos” e “Teu grito acordaria / Não só a tua casa”.
Interessantemente, essas quebras de continuidade, no mesmo campo harmônico, absolutamente não coincidem com a demarcação da letra em estrofes, e mesmo em versos.
Chama mais a atenção a presença de partes inteiras em que a harmonia cede à modalização não mais em Ré Maior, mas em Dó Maior (revezando os acordes de Fá Maior e o próprio Dó Maior), o que acontece nas seguintes ocasiões: “Tua tristeza é tão exata / E o hoje o dia é tão bonito” e “…têm ao certo / A medida da maldade / E há tempos são os jovens que adoecem / E há tempos o encanto está ausente / E há ferrugem nos sorrisos / E só o acaso estende os braços / A quem procura abrigo e proteção.”
A grande sacada, porém, está reservada para a última e apoteótica estrofe que refuta, definitiva e irreversivelmente, a hipótese da continuidade, senão estética, ao menos temática, entre a Legião pré e pós “As Quatro Estações”.
Encerrando a última modalização em Dó Maior, aparece, surpreendentemente, sobre a palavra “proteção” (cujas três sílabas são cantadas quase como melismas, com Renato prolongando empostadamente as vogais), o acorde de Lá Maior, estranho aos campos harmônicos anteriormente explorados.
Trata-se de uma quebra de continuidade total, perfeita, tanto em termos harmônicos, quanto melódicos, e mesmo líricos: a enumeração de elementos disfóricos, matéria-prima de toda a letra até aqui, cede lugar a uma solução inesperada, apontando para uma outra ética individual, baseada em valores que estavam submersos em meio ao conjunto de mazelas que até então foram apresentadas.
Essa ética é apresentada como uma receita, o que talvez tenha reforçado o messianismo que crescentemente seria atribuído à Legião Urbana: “Meu amor, disciplina é liberdade / Compaixão é fortaleza / Ter bondade / É ter coragem”. São novos valores para todos os legionários.
Ainda em termos líricos, o final da canção é ainda mais surpreendente, e enigmático: “E ela disse: / – Lá em casa tem um poço, mas a água é muito limpa”. Esses versos são, até hoje, objeto de discussão por parte dos fãs, que recorrem da psicanálise à mitologia para o interpretarem.
Destaco ainda, quanto à letra, a habilidade de Renato em usar um mesmo verbo com diferentes sentidos, nos versos “Há tempos o encanto está ausente / E há ferrugem nos sorriso”, além da impressionante aliteração em “E só o acaso estende os braços / A quem procura abrigo e proteção”.
Não se poderia esperar menos de quem consegue emplacar um hit como “Há Tempos”, que estourou em todo o Brasil, e está presente em todas as coletâneas de sucessos da Legião Urbana) sem refrão e, na verdade, sem repetir nenhum verso.
O segundo verso de “Há Tempos” é de um texto achado numa igreja em 1.600 e alguma coisa na Europa e veio por carta. Na verdade, mais tarde se descobriria que o texto nem fora “achado numa igreja”, nem era “atribuído a um autor hindu”. A revista Prosa, verso e arte desmitifica a questão, mostrando que o verso pertence ao poema “Desiderata”, de Max Ehrmann:
O poema “Desiderata” foi escrito em 1927 pelo poeta americano Max Ehrmann (1872-1945). […] Em alguns livros de referência, “Desiderata” é ainda amiúde considerado como tendo sido “achado” na velha St. Paul’s Church, em Baltimore, e que data de 1692. Entretanto, ele foi realmente escrito por Max Ehrmann, (1872-1945) que registrou o copyright em 1927; o copyright foi renovado em 1954 por Bertha K. Ehrmann.
O pároco da Igreja de Saint Paul em Baltimore, o Reverendo Frederick Kates, mimeografou o poema para os seus fiéis e posteriormente alguém o reproduziu e não incluiu o nome do autor, colocando a observação que o poema tinha sido “encontrado na Igreja de Saint Paul, datado de 1692”. Na verdade, o ano de 1692 é o de fundação da Igreja de Saint Paul.
“Há Tempos”, foi interpretada e reinterpretada várias vezes. Na própria discografia da Legião, além da versão original registrada em As quatro estações, o ouvinte poderá desfrutar de mais três versões:
Uma alucinante versão ao vivo, registrada no antológico show no estádio do Palmeiras em 1990. Lançada primeiro na coletânea Música p/ acampamentos (1992), reapareceria mais tarde numa compilação quase integral dos números daquele show, em versão remasterizada, no disco As quatro estações – ao vivo (2004).
No registro do show realizado no Metropolitan em 1994, na turnê de O descobrimento do Brasil, que não supera o registro ao vivo anterior (o vocal de Renato está desgastado).
E numa singela versão acústica do disco Acústico MTV (1999), improvisada ao fim daquela apresentação no Hipódromo da Gávea em 1992. Apesar da simplicidade (são apenas Renato cantando, Dado ao violão e Bonfá no pandeiro meia-lua), os vocais estão embasbacantes nessa apresentação maravilhosa.
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