O que é real e o que é ficção? Ao final da sessão de Somos tão jovens, filme de Antônio Carlos da Fontoura que retrata a juventude de Renato Russo (1960/1996) na Brasília de 1976 a 1982, essa questão vai ficar na cabeça de muita gente. Com estreia em 3 de maio – hoje haverá, para convidados, pré-estreias em nove cidades, entre elas BH – o filme traz muitas histórias que fãs da Legião Urbana conhecem de cor. Outras, nem tanto. “O filme não é um docudrama, é ficção. É a minha releitura daquela época para os jovens de hoje”, afirma Fontoura, que chegou à história quase que por acaso.
O veterano diretor (Copacabana me engana, 1968, A rainha diaba, 1974, e Gatão de meia-idade, 2006) tem em comum com Renato Russo um amigo, Luiz Fernando Borges (que se tornou produtor associado do projeto). Encontraram-se casualmente há alguns anos, e este falou a Fontoura que havia recebido ok de dona Carminha, mãe de Renato, para fazer um filme sobre ele. “Nunca fui um cara que vibrava com show da Legião, na época já tinha 40 anos. Mas sempre quis fazer um filme sobre música”, recorda o diretor.
Renato Russo viveu 36 anos. Para o diretor, a grande questão era que período da vida retratar. “Quando descobri a história de um moleque que, preso numa cadeira de rodas (Renato sofria de epifisiólise, uma doença óssea e durante a adolescência ficou dois anos numa cama), queria se tornar um ídolo do rock, descobri minha timeline (linha do tempo).”
Em ordem cronológica, Somos tão jovens acompanha seis anos da vida não só de Renato, mas de sua turma de amigos. O filme termina quando a banda está deixando a Capital Federal para seu primeiro show no Rio de Janeiro (a última cena traz a Legião em imagens de arquivo durante show em Volta Redonda, em dezembro de 1990, o último da turnê de As quatro estações).
O ponto forte do filme é a interpretação de Thiago Mendonça (o Luciano de 2 filhos de Francisco), que encarna um Renato Russo tão intenso, melodramático e inconstante como o que povoa o imaginário coletivo. Mas o ator de 33 anos garante uma leveza ao personagem, e não se deixa apanhar na armadilha do histrionismo (como o fazem Edu Morais e Ibsen Perucci, intérpretes de Herbert Vianna e Dinho Ouro Preto, respectivamente). “O Renato tinha um pé no caricato que era natural dele. A intenção era humanizá-lo e não retratá-lo de forma mítica”, explica o ator, que teve que aprender a tocar baixo, guitarra e a cantar. Teve como “professor” Carlos Trilha, que produziu discos da Legião e assina a direção musical do filme. Na próxima semana, a trilha sonora será lançada pela Universal. Traz além de músicas como Geração Coca-Cola, Eduardo e Mônica e Veraneio vascaína, trechos do filme.
É este o outro destaque: todos os números musicais, executados por atores, foram gravados ao vivo. Como a ênfase da narrativa está nos anos de formação, o Aborto Elétrico, banda que Renato formou com os irmãos Flávio e Fê Lemos, aparece muito mais do que a Legião. É Fê, hoje baterista do Capital Inicial, o antagonista da história. Protagonizou algumas brigas com Renato, que culminaram com o fim do trio de punk. A paixão platônica que o cantor e compositor nutria por Flávio, baixista do Capital, é bem explorada na primeira metade da narrativa.
No filme, a vida pessoal do músico é ainda marcada por dois relacionamentos com personagens ficcionais. Aninha (Laila Zaid), amiga inseparável para quem ele teria composto Ainda é cedo, é quase uma coprotagonista. “O filme é amarrado em fatos e ficcionalizado nas conversas. Sintetizamos todas as namoradinhas que ele teve numa só personagem”, explica Fontoura. Aparece em cena também, em curta participação, Carlinhos (Antônio Bento), um jovem humilde que teria se tornado muito próximo de Renato. “O Luiz Fernando me disse que ele tinha desejo de conhecer meninos que não eram de seu grupo. Como era fascinado por Taguatinga (que acabaria se tornando quase uma personagem da canção Faroeste caboclo), criamos esse personagem, que era de lá, e de outra classe social.”
Mestre da performance
Renato Manfredini Júnior pisou em um palco pela primeira vez como ator, não como cantor. Ele encenou com os colegas da Cultura Inglesa textos dos dramaturgos J. B. Priestley e Tom Stoppard. A performance daquele adolescente baixinho e elétrico, em inglês irrepreensível, chamou a atenção dos amigos e professores. Nada que os familiares não conhecessem – desde pequeno, os pais, a irmã e os primos conviviam com a habilidade do garoto para imitar diferentes vozes e dublar seriados e filmes enquanto os mesmos eram exibidos na tevê.
É sintomático e oportuno, portanto, o redescobrimento pelo cinema por meio da vida e das músicas do líder da Legião Urbana. Mais do que as outras vozes de sua geração, ele desenvolveu desde cedo o talento para criar personagens e incorporá-los em suas performances. Ainda no fim da adolescência, chegou a inventar a história completa de uma banda, 42nd Street Band, na qual encaixou seu alter ego, Eric Russell. O mais conhecido dos personagens, claro, foi o que teve o nome inspirado em variações dos sobrenomes de pessoas que admirava, como os filósofos Bertrand Russell e Jean-Jacques Rousseau. Vê-lo agora na tela grande, interpretado pelo ator Thiago Mendonça, não deixa de ser uma forma de conhecer, ou reviver, esse múltiplo processo de transformação: da tradição das artes cênicas para a energia da música urbana, do Planalto Central para o resto do país, do menino ao mito, de Renato Manfredini Júnior a Renato Russo.
Fonte: Diversão e Arte