COMO SE NADA ESTIVESSE ACONTECENDO

Por Miguel Álvares Cardoso

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Há pessoas que passam a maior parte de seu tempo em buscas existenciais, viagens do pensamento, pesquisas, raciocínios sobre a vida e a morte, o tempo e o espaço. São considerados visionários, sonhadores ou simplesmente desocupados, quando não são taxados por loucos ou alienados.

Outros não perdem seu tempo com esse tipo de preocupação. Vivem no automático, de forma prática. Acordar, trabalhar, comer, procriar, dormir. E tudo novamente no outro dia. Esses últimos correspondem à quase totalidade da população, e não são, nem de longe, sonhadores.

As pessoas mais práticas são, normalmente, mais imediatas. Isso não significa que sejam insensíveis ou não tenham visão de futuro, pelo contrário. Muitas das análises de contexto mais acertadas provém desses indivíduos. São capazes não apenas de apreender o momento com exímia coerência, mas de apontar as melhores soluções para o curto e médio prazos.

São práticos os formadores de opinião mais comentados. Frequentemente aparecem nos jornais e revistas lançando suas opiniões, muitas vezes duras, ácidas, algumas dotadas de extremo bom humor, e todas de acordo com o contexto. É deles o público cativo das crônicas – que nem são tão populares, pois o povo brasileiro infelizmente lê pouco. Mesmo assim, tais articulistas têm seu espaço garantido.

Os menos famosos se conformam em comentar os primeiros e a si mesmos em conversas de mesa de bar. Isso não apenas em tempo de Copa do Mundo, quando todos os brasileiros tem uma escalação na ponta da língua. Os práticos estão sempre prontos a opinar sobre tudo, desde o sexo na adolescência até a soberania da Amazônia brasileira, com soluções na ponta da língua para os maiores problemas do Brasil.

Falando em Amazônia, lembramos que essa região voltou à sanha dos desmatadores, e para piorar se não puserem freios ao projeto do governo de vender terras aos estrangeiros, a coisa vai piorar. Mas se não houver solução imediata, sempre existe um meio de fugir dos problemas. Importante, em todo caso, é resolver aqui e agora, pois ninguém pode viver para o amanhã, deixando o presente de lado. Parece inútil se preocupar com a fome no Norte ou Nordeste, ou com os mendigos nos sinais, que surgirão em pouco tempo. Salutar é guardar cautela excessiva para garantir o pão de amanhã, ainda que se tenha a íntima certeza de que a ceia será, no curto prazo, um belo e farto panetone.

Tudo parece mesmo muito simples. Ou tem uma solução fácil, radical, ou não tem jeito mesmo e não adianta lutar. E a vida segue assim, imediata, a quente, feita na hora. Talvez por isso o argumento de um amigo seja importante, dizendo que boa parte dos reflorestamentos são feitos com uma árvore conhecida por eucalipto, de crescimento rápido. Assim, parecem ser melhores as soluções mais rápidas, imediatas, efetivas, como uma plantação de eucaliptos.

Tenho respeito pelos que conseguem resolver mentalmente problemas fundamentais da humanidade com soluções tão rasas quanto um pires. Ou mesmo aqueles que, por outro lado, não enxergam as tais soluções simples e definem logo uma rota de fuga. Só lamento essa praticidade em defender os próprios muros em detrimento das calçadas dos outros. Os práticos consideram que jogar tênis é muito fácil, mas esquecem que as coisas complicam quando se usa uma bola. E muitas vezes não se pode simplesmente abandonar o jogo. Felizmente não posso agir da mesma forma.

Como disse, há outro tipo de pessoas, que consideram a vida, o tempo e o espaço para além de si mesmos, pensam o viver para além da própria existência. Isso não implica necessariamente um subterfúgio religioso, sobrenatural, como num renascimento ou reencarnação. A extensão é mais simples e se chama “legado sócio-cultural”. Deixar às próximas gerações ferramentas para trabalhar, subsídios para que possam fazer também melhores as suas próprias vidas.

Se os esforços mínimos de algumas pessoas aparentam ser inúteis, ao menos servem de exemplo para os que vierem depois. O trabalho voluntário no Brasil, por exemplo, que já foi revolucionário, hoje, ninguém mais lembra, mas se tornou expressivo. Se isso não melhorou o sistema em curto prazo, se não resolveram os problemas imediatos, pode ser porque algumas questões levam anos ou mesmo séculos para serem equalizadas.

A história não para, e assim como os tempos de guerra se sucedem de forma assíncrona, também as boas soluções apresentam seu desenrolar consequente. As maiores ideias e ações de fraternidade, de democracia, de respeito à vida humana, não vieram do “lugar nenhum”. Todos os elementos culturais envolvidos em um raciocínio, em um pensamento, são um produto legado por todos os “sonhadores” antepassados.

Verdadeiros gênios do pensamento humano não viveram a aplicação de sua obra. Sócrates morreu condenado ao envenenamento, mas não abriu mão de suas ideias nem viu seu pensamento sair da Grécia. Mesmo assim, é pedra fundamental de toda a filosofia ocidental. Se fosse mais um prático, teria se confortado em seu entendimento sobre o mundo, e ponto. Nada de filosofia e, portanto, nada de Física, Medicina, Ética, Estética, Política, Direito ou Economia, para citar alguns produtos “inúteis” derivados das ideias de um visionário.

Pode parecer muito interessante ser prático, raso, imediato. Mas não resolve os grandes problemas do mundo. Pode garantir o pão dos filhos, mas não garantirá a liberdade dos netos. E longe de pregar a fome da prole, digo que é necessário tomar parte na solução dos problemas fundamentais, que continuarão a existir mesmo após a morte de uma terceira geração. Desviar pode ser fácil e simples. Driblar as dificuldades pode resolver agora, amanhã, daqui a cinquenta anos, mas não tem sido uma boa alternativa para nossos quinhentos anos de “civilização”.

Nas comparações sobre a pujança da reconstrução europeia no pós-guerra, muitos atestam como explicação o fato de que a Europa goze de uma cultura em formalização há milênios. No entanto, se eles têm raízes fortes, nós também temos. Os E.U.A. têm a mesma idade que a América Latina, no entanto são os senhores da economia mundial. A diferença não é de tempo de vida, mas de atitude diante da história.
Não é apenas agora o momento do Brasil tomar as rédeas de sua própria história. Esse momento sempre existiu, desde antes da invasão portuguesa e até o final do governo Lula, e em todo o tempo seguinte. É trabalho de todo dia, é preocupação de todas as pessoas e motivo de conversa de todas as mesas de bares entre todos os amigos.

Ainda que se façam reflorestamentos com eucaliptos, esta não é a única árvore do Brasil. Há muitas outras que podem ser replantadas, cultivadas, desenvolvidas. Algumas pessoas só plantam árvores que possam ver crescidas. Considerando uma expectativa de vida de 70 a 80 anos, todas as árvores que não tenham um crescimento acelerado, como a sequoia por exemplo, estariam fadadas à extinção gradual se o mundo fosse habitado apenas pelos práticos.

O mesmo ocorre com as boas ideias. Se todos os brasileiros estiverem apenas preocupados com o pão de amanhã e depois, em breve não haverá Brasil. E se há pessoas que podem se preocupar menos com esse fato, que sejam então os primeiros a buscar soluções e caminhos para que seus filhos e os amigos de seus filhos tenham um futuro melhor que o nosso.

As soluções nem sempre são fáceis. Os caminhos podem ser tortuosos, lentos, nada práticos. E nossos esforços de uma vida inteira podem nem servir para coisa alguma. Apesar de tudo, é fundamental buscar um papel na defesa do que é certo e justo, na correção das falhas, na melhoria da vida humana. Creio que seja essa a revolução possível, um meio termo entre o sonho e a atitude.
Tenho certeza de que nossos netos e bisnetos herdarão muitos dos problemas que enfrentamos hoje, e buscarão, muitas vezes, soluções fáceis e imediatas, como o eucalipto. Ainda assim, se o mundo não se tiver tornado prático demais, haverá sonhadores, como eu. E quando nossos descendentes olharem para o alto à procura dos valores que deixamos, entre as diversas obras fundamentais ao espírito criador da humanidade, entre as muitas árvores seculares e majestosas, encontrarão o jacarandá que plantamos um dia, e cuja imponência nunca pudemos enxergar.

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