Você é Racista – Só Não Se Deu Conta

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Mais de 125 anos após a abolição da escravatura, a discriminação racial ainda é forte no Brasil. Você pode até achar que não é preconceituoso, mas um fenômeno do cérebro chamado viés inconsciente faz que as pessoas disseminem o racismo sem perceber. A boa notícia? Isso tem cura.

Uma mulher branca e uma negra dividem um banco de metrô. A negra tem o cabelo crespo solto, estilo black power. A branca repara, acha curioso e pede para tocar nas madeixas. A alguns metros dali, um negro vestindo uma blusa com capuz caminha pela avenida ao som do rapper Emicida. Um homem de negócios, de terno e ao celular, atravessa a rua quando o vê. Um idoso internado num hospital do outro lado da cidade reclama com uma negra vestida de branco sobre a demora da médica, sem saber que está falando com a própria. Na televisão, um programa humorístico tem um personagem chamado Africano que emite sons guturais e se comporta como uma besta. O que todas essas situações têm em comum? São casos cotidianos de racismo que passam despercebidos pelas pessoas por causa de um fenômeno que a psicologia social chama de unconscious bias, ou, em português, “viés inconsciente”.

O viés inconsciente é um conjunto de estereótipos sociais, sutis e acidentais que todas as pessoas mantêm sobre diferentes grupos de pessoas. É o olhar automático para responder a situações e contextos para os quais você é treinado culturalmente, como uma programação do cérebro. O ser humano tem a capacidade de pensar rápido ou devagar. Quando decidimos sobre a compra de uma casa, pesamos todos os lados para tomar a decisão. Ou seja, pensamos devagar. Mas, em outras situações do dia a dia, nos baseamos em julgamentos intuitivos que são processados rapidamente pelo cérebro, sem nos darmos conta. São como atalhos que a mente usa porque é mais fácil. O problema é que ele também nos prega peças. Toma decisões com base em associações com memórias antigas, noticiário, novelas, aulas, conversas com familiares e amigos. Nelas, há milhares de estereótipos. Não adianta se ofender e dizer que não é preconceituoso. Se você tem um cérebro, tem viés inconsciente. Sem que perceba, processos neurais e cognitivos tiram conclusões por você, e é aí que entra a discriminação disfarçada.

Claro, ninguém quer assumir que é preconceituoso. A expressão racismo parece remeter a algo de tanto tempo atrás que já não faz parte do nosso cotidiano. Tem relação com conflito: é a divisão das pessoas com base no ódio, o enfrentamento de brancos e negros, aquilo que a história contou sobre o sul dos Estados Unidos ou o apartheid na África do Sul. Obsoleto, démodé. Será? O racismo existe. Só porque não o vemos se manifestar o tempo todo não se pode dizer que ele não esteja aí. Na verdade, essa é parte do problema: o racismo que imaginamos não é simplesmente o que vemos. Ele se reproduz também no invisível e no cotidiano, no que se faz e não se percebe. No viés inconsciente.

No Brasil, essa questão atinge níveis mais drásticos por duas razões: o racismo é velado e vivemos numa sociedade hierarquizada com base em privilégios. Ter privilégios significa usufruir de oportunidades e escolhas sem ter que pensar sobre isso, como ligar a torneira de casa para ter água. Decisões que parecem banais, mas não são, por causa da existência de um conjunto de indivíduos da mesma sociedade que não têm as mesmas oportunidades. É justamente por possuir privilégios que é difícil entender que, apesar da liberdade para se esforçar e lutar pelo que se deseja, não são todos que atingem a linha de chegada com o mesmo sucesso.

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HIERARQUIA RACIAL
A teoria sobre privilégios é antiga nas ciências sociais e apareceu pela primeira vez para falar sobre o racismo. Em sua obra As almas da gente negra (Lacerda, 1999; The Souls of Black Folk, 1903), o sociólogo afro-americano W. E. B. Du Bois fala sobre a possibilidade de o branco escolher lidar ou não com a questão de ser negro naquela sociedade — algo que o negro em momento algum poderia. Diante dela, há o privilégio. Outra teórica do tema, Peggy McIntosh, elencou cerca de 50 situações nas quais um privilégio é exercido. Ao lado de outras análises que envolvem gênero, sexualidade e classe, elas viraram base para questionários e exercícios para entendermos as posições de privilégios dos indivíduos

 A hierarquia racial é parte das camadas que estruturam a pirâmide de privilégios que fazem parte da cultura e da sociedade. No topo está o homem branco, seguido pela mulher branca. Só depois aparecem o homem negro e, por último, a mulher negra.

O racismo, portanto, se reproduz nessa estrutura de privilégios porque é dentro dela que o preconceito de cor exerce seu poder: criando obstáculos. Eles são feitos para os privilegiados que tendem a não enxergar as dificuldades e problemas enfrentados pelos outros, por inserir barreiras reais (dificuldade de acesso a educação, saúde, emprego, infraestrutura) e psicológicas (acreditar que não pode conseguir, autoexclusão). Quando a pessoa não atenta para as posições que ocupa numa escala de privilégio, dificilmente fica explícito se ela está colaborando, mesmo que involuntariamente, com certas atitudes e ações que reproduzem o preconceito — pois ela está operando pela lógica do viés inconsciente. É justamente por possuirem privilégios que para muitos indivíduos é difícil entender que, apesar do esforço pessoal, existem, sim, pessoas que se beneficiam deles. No caso específico de uma sociedade racista, em quantidade e frequência, são os negros e negras que carregam bagagens sem receber nenhum tipo de apoio.

HOLOCAUSTO URBANO
Para entender a cara do racismo, é necessário enxergar o modo implícito como a pessoa incorpora o racismo e o reproduz sem pensar, mesmo ciente de que é um problema grave e que afeta a vida de mais da metade da população brasileira — de acordo com o último Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, 51% dos brasileiros são pretos ou pardos. Estudo publicado no ano passado na aclamada revista norte-americana Nature mostra que, quando a diversidade avança e as pessoas passam a ser mais tolerantes em relação às diferenças, a discriminação fica mais underground, internalizada em processos que neurocientistas e psicólogos começaram a investigar só recentemente.

Tamir Rice, de 12 anos, brincava com uma arma de plástico no playground de seu prédio em Cleveland, Ohio, nos Estados Unidos, quando o policial Timothy Loehmann saiu de sua viatura, disparou três tiros e matou o garoto. O policial havia recebido um chamado sobre um “homem negro armado” no bairro quando avistou Rice. Uma testemunha disse que ouviu os disparos antes da recorrente frase “Parado!”. A tragédia comoveu os norte-americanos (em especial os afro-americanos) e levou a uma série de protestos contra a truculência policial em relação aos negros. Episódios como esse, contudo, não são exclusividade dos Estados Unidos. Jovens negros são exterminados nas favelas brasileiras todos os dias em nome da segurança pública, na imensa maioria das vezes com muito menos repercussão. Mas por que, para a polícia,  eles representam uma ameaça, mesmo quando são inocentes?

Até agora, o que sabemos é que esses conceitos ficam armazenados nos lóbulos temporais do cérebro e ligam, por exemplo, os termos “negro” e “armado” a coisas como hostilidade, ameaça e crime. Ou seja, a um bandido. Por outro lado, se a mesma coisa acontece com “branco” e “armado”, a imagem que vem à cabeça é a de um delegado de polícia. Esse estereótipo preconceituoso, então, viaja até o córtex médio frontal, onde é interpretado pela primeira impressão da pessoa. Isso tudo acontece em poucos segundos. A parte frontal do cérebro está ligada também à empatia, mas pesquisas no campo da neurociência indicam que há uma redução da atividade dessa área quando pensamos em pessoas consideradas de menor status social. Passamos a vê-las mais como objetos que como seres humanos. Assim, estereótipo e desumanização conspiram para criar a impressão de que alguém é perigoso e sua vida não importa muito.

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ATRIBUTOS RUINS
A mesma lógica de desvalorização por estereótipo está incrustada em nosso ideal de beleza. Isso foi comprovado diversas vezes com um conjunto de experimentos realizados pela primeira vez nos Estados Unidos na década de 1930 e foi replicado em vários paí­ses em diferentes épocas. No teste, crianças com idade entre 4 e 6 anos são apresentadas a duas bonecas, uma branca e uma negra, e respondem sobre algumas características dos brinquedos. Tanto as crianças brancas como as negras vinculam a boneca de olhos azuis a beleza e atributos positivos, enquanto a boneca negra é vinculada a feiura e atributos negativos. No final do experimento, os pesquisadores perguntam às crianças com qual das bonecas elas se parecem — as crianças negras se enxergam na boneca negra, a dos atributos negativos. O racismo do experimento mostra como o viés inconsciente é ensinado e assimilado mesmo antes de as crianças criarem juízo crítico sobre aspectos da vida e da sociedade.

O que acontece com essas meninas que crescem se identificando com “a boneca mais feia”? São excluídas, inclusive dos relacionamentos amorosos. “A formação da mentalidade das pessoas se dá com o que elas veem, e com isso muitas mulheres negras são deixadas de lado, principalmente as que querem se relacionar com negros. Elas são a última opção”, disse a GALILEU Daniela Gomes, ativista e doutoranda em estudos africanos pela Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos. Durante o período escravocrata brasileiro, vigorava um ditado popular segundo o qual “mulher branca é para casar, mulata é para fornicar, negra é para trabalhar”. Se você pensar, não faz tanto tempo assim que a escravidão foi abolida — em 1888. Em algum lugar do imaginário social, esse ditado ainda está vivo. Sabe-se que entre os fatores que são levados em conta na escolha de um parceiro estão renda, educação e cor ou raça, ou seja, atributos preconcebidos para entender que uma pessoa é igual a você, que ela está na mesma posição, na mesma situação social que você.

Para quem acredita que o Brasil é o país da harmonia e da mistura de raças, as estatísticas mostram que o viés inconsciente é mais forte. Segundo o último Censo do IBGE, 70% dos casamentos no país ocorrem entre pessoas da mesma cor. Na pesquisa, raça é o fator predominante na escolha de parceiros conjugais. Nos últimos dez anos, as uniões em função da cor ou da raça praticamente não se alteraram. Em 2000, o índice de pessoas que se casavam com outras da mesma raça era 71%. Se os casamentos não fossem influenciados por questões raciais, esse índice deveria ficar em torno de 50%, embora já tenha sido 80% na década de 1980. Só que, a partir da década de 1990, com a ascensão econômica de homens negros, eles passaram a querer se relacionar com mulheres brancas como forma de obter status social. E as negras acabaram sobrando: 53% das mulheres solteiras no Brasil são negras. São as que menos se casam e as mais propensas ao celibato, de acordo com o levantamento.

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RACISMO MASCARADO
Outra barreira da mulher negra que os brancos não conseguem enxergar está na indústria da beleza. Já reparou em quantos tons de base para pele negra existem nas lojas de maquiagem — quando existe algum? Em um país onde as negras representam um quarto da população, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o fato de serem consumidoras mas não serem vistas como público-alvo não pode ser entendido como questão de mercado. Isso explica o fas­cínio das jovens negras pela atriz Lupita Nyong’o, que ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 2014 por 12 anos de escravidão e já apareceu em várias campanhas de moda com roupas e maquiagens coloridas. “Mais do que ser uma personalidade que estampa editoriais, Lupita empodera outras mulheres como ela. Durante parte da minha adolescência, eu usava cores claras, gloss de batom ou base nas unhas, porque sempre ouvimos que negras não combinam com cores fortes. Hoje uso o que bem entender”, diz Hanayrá Negreiros, que estudou moda e quer pesquisar maneiras de incluir a cultura afro-brasileira no setor.

A discriminação de cor se manifesta de forma aberta e velada. No Brasil, a forma aberta faz parte de episódios de conflitos diretos. O número de assassinatos de jovens negros periféricos é um exemplo disso. Já a discriminação velada faz que conflitos raciais sejam minimizados como um mero mal-entendido. Evita-se falar deles, de raça, de racismo, ou mesmo usar o termo “negro”, muitas vezes com o argumento de que trazer isso à tona pode gerar ódio racial, como acontece em outros países. O fato de o racismo velado ter força na sociedade brasileira torna difícil conseguir evidenciar alguns processos que impactam concretamente as vítimas do racismo. Mesmo em situações mais explícitas, como a violência policial contra jovens negros, a leitura que se faz é que ora é um problema social, ora um grande mal-entendido. Racismo não faria parte dos problemas em que a nação deve se concentrar para resolver. Algumas pessoas tentam até se esquivar do problema alegando que raça não existe. De acordo com o sociólogo e professor titular da USP Antônio Sérgio Guimarães, raça é um conceito que não corresponde à realidade natural, e sim ao mundo social. É uma forma de classificação baseada numa atitude negativa em relação a certos grupos sociais. Mesmo assim, é importante trazer a discussão da raça à tona, pois é a partir de sua noção que algumas classificações impactam individual e coletivamente essas pessoas.

Já a definição de racismo implica uma forma de explicar diferenças pessoais, culturais e sociais a partir de diversidades tomadas como naturais. Um exemplo disso é acreditar que negros nascem naturalmente com “samba no pé” porque é um gênero musical popular no seu meio social e étnico, ou acreditar que orientais são tão bons em ciências exatas porque têm melhores notas na área. Elogios equivocados ou falsas qualidades — como a hipersexua­lização do homem negro por causa da crença de que ele tem o pênis grande — entram nesse pacote, bem como frases presentes em nosso vocabulário. Na expressão “a coisa está preta”, há o uso do termo “preto” como valor negativo, uma associação pejorativa de ser preto com ser ruim. O mesmo acontece com “mercado negro”, com um agravante histórico: a origem do termo é ligada ao mercado ilegal de escravos, que passou a vigorar no Brasil após a proibição do tráfico, em 1850. Sinônimo de tornar negro, o verbo “denegrir” significa “deturpar, destruir, fazer mal”. Falamos o tempo todo de “inveja branca” (quando é positiva) e “inveja negra” (quando se deseja o mal a alguém). Outra expressão problemática e repetida à exaustão é “não sou tuas negas”, também de referência histórica, já que “negas” remete às escravas negras, que sofriam abusos e maus-tratos de seus senhores brancos — e mais uma vez aqui são referidas como inferiores à pessoa que fala.

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Apesar de acharmos que nosso jeito de ser e de agir entre nós mesmos e com povos de outros países é uma forma de harmonia e de cordialidade, na verdade isso apenas mostra uma vocação quase explícita de não criar conflito direto. Tudo o que é problemático e pode gerar conflito é tratado de maneira velada, escondida. Quais são as implicações disso? Uma pesquisa clássica do Datafolha realizada em 1995 mostrou que 90% dos brasileiros admitiam que existe preconceito de cor no Brasil, mas 96% dos entrevistados se identificavam como não racistas. Ou seja, evita-se que a discriminação seja colocada de maneira explícita como marca própria de nossa identidade. Isso torna o nosso racismo velado: ele existe, mas não é exposto. Vale notar que são dados comportamentais, ou seja, não mudam rapidamente, como a quantidade de habitantes ou o valor do produto interno bruto (PIB). Esse comportamento também explica as especificidades do racismo à brasileira, que produz desigualdades visíveis nos dados, mas se reproduz com força quase inabalável em processos culturais e silenciosos de opressão, como a rejeição simbólica do negro e do africano.

ANOS DE ESCRAVIDÃO
A história do Brasil é feita de heranças e continuidades. Mesmo diante dos avanços políticos e sociais, o país ainda é refém de problemas criados há muito tempo. É o que acontece com o racismo, produto de uma ordem hierárquica desenvolvida na sociedade escravocrata e que deu o tom da formação da nação por quase quatro séculos. O Brasil foi o país que mais recebeu escravos do tráfico negreiro feito a partir da África durante o período colonial e um dos últimos a abolir a escravidão. Importamos cerca de 5 milhões de africanos, enquanto os Estados Unidos e o Canadá receberam 400 mil. Mesmo após a abolição e a proclamação da República, essa ordem hierárquica nunca se desmantelou por completo. E o que é pior: ela se modernizou e se instalou nas relações sociais da perspectiva de classes e de raça.

A herança da escravidão, portanto, continua afetando o modo como a sociedade se organiza, gerando um racismo que está conectado a uma hierarquia estamental (dividida por nascimento), e não de classes, como se costuma erroneamente vincular. Isso significa que não existe mobilidade efetiva entre grupos. Do conjunto dos 10% mais pobres do país, 70% são negros, enquanto entre os 10% mais ricos apenas 15% são negros. Assim, o racismo se implanta como instrumento de manutenção das hierarquias, e se manifesta no preconceito de cor e na valorização do embranquecimento.

Quem sofre racismo enfrenta obstáculos concretos no acesso a direitos, bens e serviços. Mas há outros efeitos colaterais: baixa autoestima, problemas de aceitação, de ordem psicológica e até depressão. Segundo pesquisa do instituto Psychology of Addictive Behaviors, vítimas de racismo são mais propensas a ter problemas com álcool, drogas e depressão. O efeito psicológico é análogo ao que é causado pela perda do trabalho ou de um ente querido. Para piorar, quando se recorre a auxílio médico, vem um novo golpe do viés inconsciente.

De acordo com um relatório do Instituto de Medicina dos Estados Unidos, latinos e negros que quebram a perna recebem menos medicação para dor do que pacientes brancos com o mesmo ferimento. As minorias também ficam em desvantagem na hora de receber remédios adequados para doenças cardíacas, hemodiálise e transplantes. Segundo David Wil­liams, professor de estudos africanos da Universidade Harvard, isso acontece porque os médicos alimentam um es­tereótipo negativo sobre alguns grupos e tendem a tratá-los de maneira diferente. O problema pode ser encontrado também nas pesquisas de novos medicamentos. O bioengenheiro Estan Burchard, da Universidade Williams, publicou um estudo no ano passado que mostra que a maioria dos testes feitos nos Estados Unidos é focada em pessoas brancas e descendentes de europeus. Ou seja, remédios vendidos hoje em farmácias não são os mais eficazes para pessoas de outras etnias. Na verdade ninguém se importa, porque é mais fácil fazer testes com grupos semelhantes, e os próprios médicos acabam preferindo estudar pacientes parecidos com eles. Até as mulheres entrarem na medicina, por exemplo, os testes só incluíam homens.

Outro bom exemplo de viés inconsciente é facilmente observado em testes de emprego com candidatos com nomes claramente étnicos. O Escritório Nacional de Pesquisa Econômica dos Estados Unidos publicou no mês passado o resultado de um experimento. Candidatos com nomes obviamente de brancos, que no Brasil corresponderiam a algo como “Antônio”, precisavam enviar dez currículos para receber uma resposta de emprego, enquanto aqueles com nomes mais marcados pela raça — como nossa personagem Hanayrá — tinham de mandar 50% mais para ter uma resposta.

A boa notícia é que é possível combater o viés inconsciente. Pesquisa desenvolvida na Universidade Northwestern e publicada na revista norte-americana Science concluiu que bastam 90 minutos de sono para apagar o racismo e o machismo do cérebro. Para isso, primeiro os psicólogos usam o teste de associação implítica (TAI), jogo criado em laboratório há uma década, no qual é preciso ligar imagens a palavras (por exemplo “negro” e um termo positivo ou negativo) muito rapidamente, sem pensar. É uma forma de distrair o cérebro para acabar com aquele papinho de “não tenho preconceitos” e deixar aflorar o que você realmente sente pelo outro, antes que a consciência entre em ação.

Na experiência, foram chamados homens e mulheres brancos, e, numa escala de zero (sem preconceito) a um (preconceito máximo), a pontuação média foi acima de 0,55. Após o experimento, os psicólogos mostraram os resultados aos participantes e repetiram o teste separando-os em dois grupos de rapazes brancos. Um deles ouvia um som quando escolhia associações não discriminatórias. Na sequência, todos foram convidados a dormir por 90 minutos para aplicar a consolidação de memórias através do sono. Quando eles entravam em sono profundo, os pes­quisadores emitiam o mesmo som ouvido pelos participantes ao fazer boas associações. Ao acordar, aqueles embalados pelo “som da diversidade” haviam diminuído o quociente de intolerância pa­ra 0,17. Os outros continuaram com a mesma nota. Uma semana depois a lavagem cerebral foi testada novamente, e o resultado se manteve estável para os que não ouviram o som e menor ainda para os que ouviram.

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REMÉDIO SUTIL
Já os holandeses da Universidade de Leiden foram mais radicais e fizeram o mesmo teste com choques elétricos. A diferença é que os participantes sabiam que estavam sendo testados por causa dos eletrodos. O resultado, publicado na revista Brain Estimulation, foi que as pessoas são capazes de controlar seus sentimentos mais profundos ao estimular o córtex pré-frontal. Só é preciso um pouco de eletricidade. E nem é o tipo de eletrodo usado em Alex no clássico Laranja mecânica, mas uma versão light que só provoca um pouco de cócegas.

Mas para lidar com as estruturas de privilégio o remédio é mais sutil. “A mudança da mentalidade do racismo é um esforço coletivo. O problema é que nós, negros, queremos mudar isso, mas a maioria da população não. Um lugar mais diverso, que respeita as particularidades de forma pacífica não é melhor apenas para crianças negras, é bom para todo mundo”, diz Daniela Gomes. Tentar entender criticamente as situações sociais e quais privilégios estão em jogo é a melhor saída. E a famosa empatia, a capacidade de escutar e sentir a dor do outro, ainda é a melhor forma de se conectar e entender o ponto de vista de quem está passando por uma situação de desprivilégio.

O EXPERIMENTO CLARK – O teste que acabou com a segregação racial nos EUA

Há mais de 60 anos, em meio ao movimento por direitos civis nos Estados Unidos, os psicólogos Kenneth e Mamie Clark desenvolveram uma pesquisa para entender a atitude das crianças em relação a raça. Quando apresentadas as duas opções de cor de bonecas, todas as crianças, brancas e negras, preferiram as brancas porque as acharam mais bonitas. O “experimento Clark” contribuiu para que a Suprema Corte determinasse que a segregação racial nas escolas era inconstitucional. Mas ainda hoje as crianças mostram rejeição ao negro. Aos quatro anos, Daniel Carneiros, personagem desta reportagem, disse aos pais que queria ter um irmão, só que ele “não podia ser marrom”. “Quando criança, eu não via heróis e personagens negros na TV, tudo que é relacionado ao negro tinha e tem uma tendência a ser visto de forma pejorativa”, conta ele.

Fonte: Revista Galileu

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