Nova teoria da gravidade elimina o conceito de matéria escura e desbanca as ideias de Einstein e Newton. Ela já passou em um teste importante — resta saber se tem futuro
Era verão no sul da França em 2009 quando um ladrão roubou todos os pertences do quarto em que o físico teórico Erik Verlinde passava férias. Sem passaporte, o holandês, então com 47 anos, teve de ficar uma semana a mais. Mas em vez de aproveitar para comprar um passeio de ônibus com guia turístico, ele achou que a folga inesperada era uma boa chance para refletir sobre o que estaria por trás da gravidade.
“Tive a euforia de um ‘momento Eureka’ que permaneceu comigo por dias”, diz o respeitado teórico das cordas da Universidade de Amsterdã. Verlinde concluiu que Newton e Einstein talvez estivessem errados (e tivessem levado todo o resto da comunidade científica junto com eles). Em português claro: ele começou a achar que a gravidade não existia — ou, pelo menos, não do jeito que aprendemos na escola.
Hoje, quase todos os cientistas concordam que a natureza funciona graças a quatro forças fundamentais: o eletromagnetismo, as forças nucleares forte e fraca e a gravidade. Verlinde, contudo, defende que a gravidade entrou de penetra no grupo — e que deve se retirar o quanto antes. Em uma analogia feita logo depois que o holandês publicou seu primeiro artigo a respeito do tema, o The New York Times chamou a hipótese de Verlinde de “teoria do cabelo em dia úmido”.
“Funcionaria mais ou menos assim: seu cabelo fica cheio de frizz no calor e na umidade porque há mais possibilidades de ele estar ondulado do que liso, e a natureza gosta de opções. Então, deixar o cabelo liso exige o emprego de uma força que elimina as opções da natureza. A força que nós chamamos de gravidade seria simplesmente um produto da tendência da natureza de maximizar a desordem.”
O trabalho de Verlinde alcançou um novo estágio em novembro do ano passado, com a publicação do artigo Emergent Gravity and the Dark Universe (“Gravidade Emergente e o Universo Escuro”), em que ele explica os aspectos formais de sua teoria. Para chegar lá, o holandês contou com a preciosa ajuda de Herman Verlinde, seu gêmeo idêntico, que também é físico teórico, mas na Universidade de Princeton (EUA).
Como o irmão, Herman investiga a teoria das cordas, que tem potencial de se tornar uma teoria de tudo. Muitos pesquisadores estudam esse conceito por acreditarem que ele pode unificar a física. Isso porque hoje ela é partida em duas: a relatividade geral de Einstein, que explica os movimentos de corpos gigantescos como as estrelas; e a mecânica quântica, que regula o universo microscópico de partículas menores do que um átomo.
“A relatividade geral não é compatível com a mecânica quântica, os cálculos não se combinam”, diz Rogério Rosenfeld, diretor do Instituto de Física Teórica da Unesp.
As duas teorias funcionam muito bem quando aplicadas no contexto em que foram criadas, mas falham ao serem empregadas uma no campo da outra. É como se existissem duas físicas “rivais” que tentam explicar o mesmo universo.
E um dos grandes empecilhos é justamente a gravidade, que descreve tão bem o rumo dos corpos celestes, mas é incapaz de ser aplicada em nível atômico. O que a teoria das cordas propõe é uma resposta que une as duas vertentes. É que, se o universo inteiro fosse feito de cordinhas microscópicas vibrantes, como acreditam os teóricos das cordas, a explicação para os movimentos de estrelas e átomos seria a mesma. Mas tem um detalhe: ninguém consegue provar essa teoria em laboratório.
DESORDEM E PROGRESSO
É das profundezas do hipotético e fascinante mundo das cordas que os Verlinde (e outros antes deles) acreditam que surja a gravidade. Não da atração entre dois corpos, como descreveu Newton, nem da distorção que objetos enormes provocam no tecido do espaço-tempo, como defendia Einstein. “É preciso pensar o espaço como sendo feito de unidades de informação”, afirma Erik Verlinde.
As ideias do holandês são escandalosas para alguns cientistas porque dispensam o uso da matéria escura — que, na verdade, é um coringa criado para fazer o conceito de gravidade de Einstein funcionar. Para entender a teoria do físico alemão, imagine uma cama elástica com bolinhas de gude espalhadas pela superfície.
Elas vão ficar paradas porque todas têm basicamente o mesmo peso. Agora, coloque uma bola de boliche no meio. Isso vai causar uma deformação na superfície do tecido, fazendo com que as bolinhas de gude “orbitem” a bola de boliche. É exatamente assim que o Sistema Solar funciona, segundo a teoria proposta por Einstein, que é a mais aceita até hoje.
Quanto mais pesado o objeto, maior a distorção no tecido da cama elástica (ou do espaço-tempo) que ele causa — e é por ser um “objeto” extremamente pesado, ou supermassivo, que o buraco negro atrai tudo para si (veja o quadro no fim do texto).
O problema é que existem distorções no espaço-tempo que os cientistas não entendem. Eles conseguem detectá-las, conseguem ver que alguma coisa “puxa” outros corpos para si, mas são incapazes de explicar exatamente por quê. Para piorar, essas bolas de boliche invisíveis representam 27% do Universo.
A elas damos o nome de matéria escura, um conceito que foi verificado pelo astrônomo Fritz Zwicky na década de 1930 e confirmado pela astrônoma Vera Rubin nos anos 1970. Combina perfeitamente com a ideia de Einstein, no entanto, ninguém nunca viu, nunca comeu, só se ouve falar por meio de observações indiretas.
O que Verlinde diz é que não existem bolas de boliche invisíveis coisa nenhuma. Se os cientistas só as criaram para validar uma teoria, o problema pode estar na teoria — no caso, a teoria de ninguém menos que Einstein.
Além disso, se a gravidade também é incompatível com a mecânica quântica, por que aposta-se tanto nessa ideia? Ela funciona muito bem em vários casos, mas, para Verlinde, o papel dos cientistas é justamente fazer esse tipo de pergunta. Segundo o físico holandês, o que faria os corpos se moverem e “orbitarem” uns aos outros não seria a distorção do espaço-tempo, e sim a tendência que as coisas têm de se espalhar de forma desordenada até encontrarem um equilíbrio. Para os mais íntimos, essa tendência é conhecida como entropia.
CAFEZINHO QUÂNTICO
Usando a mesma ideia do cabelo em dia úmido, Margot Brouwer, astrônoma do Observatório de Leiden, na Holanda, compara o conceito de gravidade de Verlinde com uma xícara de café. “O calor não é propriedade fundamental do café, mas uma propriedade emergente causada pela forma como as moléculas ali dentro se move”, diz ela. Se o Universo fosse uma canecona de café, a gravidade seria o calor que emerge da interação entre as partículas boiando. Mas isso ainda é abstrato. “Ninguém sabe o que são essas partículas.”
Se for assim, a gravidade e as equações de Einstein podem ser derivadas da velha termodinâmica — aquelas fórmulas que vimos no colégio para explicar como calor e gases se comportam. Foi o que demonstrou um artigo de 1995 do físico Ted Jacobson, da Universidade de Maryland (EUA).
Pistas da conexão entre gravidade e termodinâmica surgiram ainda na década de 1970, a partir do estudo dos buracos negros feito pelos físicos Stephen Hawking (ele mesmo) e Jacob Bekenstein. Há indícios de que essa ligação tem a ver com a entropia (lembra do cabelo ondulado? Pois então).
Em termos científicos, a entropia é o processo pelo qual uma sala com átomos de oxigênio amontoados em um canto acabará com eles espalhados por toda parte, até que um equilíbrio seja atingido, como em um ônibus lotado no qual todos saem correndo loucamente para conseguir um espaço.
“Não existe uma força que espalha os átomos; o princípio que faz isso é a maximização de entropia”, explica Nathan Berkovits, diretor da divisão sul-americana do Centro Internacional de Física Teórica. “A ideia de Verlinde é usar o princípio de maximização de entropia para substituir a força fundamental de Newton e Einstein”, diz o especialista em teoria de supercordas, vertente da teoria das cordas.
EINSTEIN PIRA
É dos buracos negros que veio uma outra ideia mirabolante que está no cerne da gravidade de Verlinde: o princípio holográfico, proposto pelo Nobel da Física holandês Gerard ‘t Hooft, que não por acaso orientou o mestrado de Verlinde.
O princípio holográfico sugere que as coisas tridimensionais são feitas de informação, e que essa informação fica codificada em uma “superfície” bidimensional. Seria como sombras projetadas em uma parede. O mesmo ocorreria nos buracos negros: a informação que cai lá dentro fica guardada nas duas dimensões do horizonte de eventos, o limite que separa o que está dentro do que está fora.
Verlinde usa essa ideia como base para sugerir que o tecido do espaço-tempo não passa de um emaranhado de partículas de informação (como as imagens projetadas na parede) entrelaçadas. O entrelaçamento quântico faria as partículas trocarem influências de forma instantânea, como uma irmã gêmea que sabe o que a outra sente mesmo estando longe.
O problema é que, por acontecer exatamente no mesmo instante, essa troca de informações vai contra uma das ideias mais elementares de Einstein, a de que nada pode ser mais rápido do que a velocidade da luz. Para Verlinde, a gravidade surgiria de interações microscópicas pouco compreendidas entre essas partículas de informação e da entropia.
Em dezembro de 2016, uma equipe liderada pela astrônoma Margot Brouwer publicou uma pesquisa que foi o primeiro teste sério das ideias de Verlinde. E eles se saíram bem: explicaram a distribuição da massa de mais de 30 mil galáxias.
Mas nem tudo é motivo para comemorar: em um outro estudo feito pela Universidade da Califórnia em Los Angeles, este com as órbitas dos planetas do Sistema Solar, a teoria de Verlinde falhou miseravelmente: a discrepância dos dados foi enorme.
Foi como se um político dissesse que tem R$ 1 em uma conta na Suíça quando, na verdade, tem R$ 10 milhões. “A teoria de Verlinde precisa ser abandonada como descrição da natureza ou modificada”, diz o físico Aurélien Hees, coautor do estudo.
Há décadas, físicos tentam modificar conceitos clássicos da gravitação (veja abaixo), mas nenhuma proposta funciona tão bem em todas as escalas como o paradigma da matéria escura descartado por Verlinde.
“Acredito nesse tipo de solução porque é a que melhor resolve o problema”, diz o astrofísico italiano Fabio Iocco, pesquisador da Unesp. Ele valoriza os esforços do colega holandês, mas mantém o pé atrás: “Um trabalho teórico muito bom não significa que seja fisicamente correto”.
Um dos poucos brasileiros que trabalharam com a gravidade de Verlinde, o físico Fábio dos Anjos problematizou no mestrado a questão da matéria escura. “Pensar fora da caixa gera resistência daqueles que acham que não vai dar em nada”, pondera. Ele diz ficar aflito com o fato de que experimentos ultracaros tentam há anos detectar partículas de matéria escura e não conseguem. Nem o LHC, o maior acelerador de partículas do mundo, encontrou nada.
De qualquer jeito, se Verlinde quiser mesmo derrubar Newton e Einstein de seus pedestais, terá de ajustar sua teoria para que explique desde o Sistema Solar até as galáxias distantes e as flutuações na radiação cósmica que preenche o Universo. Há um longo caminho pela frente, e só uma certeza: nossas coisas vão continuar caindo.
TESTES DA GRAVIDADE
As avaliações feitas para saber se uma teoria gravitacional funciona
1. Galáxias
Teorias gravitacionais precisam explicar dados de velocidade de rotação e distribuição de massa em galáxias e aglomerados de formatos variados
2. Radiação cósmica de fundo
Outro meio de testar ideias sobre a gravidade é analisar flutuações nos raios cósmicos que permeiam o Universo, herança direta do Big Bang
3. Estrutura em grande escala
Para ser aceita, uma teoria da gravidade deve explicar como se formaram os superaglomerados e filamentos de galáxias do cosmo
4. Órbitas do Sistema Solar
Pela proximidade do Sol, a órbita de Mercúrio é um pouco distorcida: fenômeno chamado de precessão do periélio. Calculá–lo permite testar teorias da gravidade
5. Ondas gravitacionais
São o mais novo teste. Explosões violentas e objetos enormes emitem ondas no espaço-tempo, que contam coisas sobre a gravidade
LADO A E LADO B DA GRAVIDADE
Há décadas físicos teóricos tentam aplicar modificações nos conceitos da gravitação de Newton e de Einstein para resolver seus problemas
Tentativa 1
Por mais de dois séculos, a lei da gravitação universal de Newton reinou. Segundo ela, partículas se atraem por uma força proporcional à massa.
Tentativa 2
Então veio a relatividade geral, no início do século passado. Einstein explicou o espaço–tempo como sendo um tecido que pode ser distorcido e gerar a gravidade.
Tentativa 3
Em 1981, Mordehai Milgrom criou a dinâmica newtoniana modificada (MOND), que muda leis de Newton e explica rotação de galáxias sem adicionar matéria escura.
Tentativa 4
Surge de estudos sobre buracos negros: aponta conexão entre gravidade e termodinâmica. Diz que a gravitação não é fundamental. Verlinde inclui outros conceitos.
FUNDAMENTAL OU EMERGENTE?
Entenda as diferenças entre as gravidades propostas por Einstein e por Verlinde
Einstein
A relatividade geral define gravidade como uma força fundamental que se propaga pelo espaço-tempo: ela é criada pela distorção que corpos massivos provocam nesse tecido. Buracos negros, como os da imagem abaixo, são exemplos tão extremos do fenômeno que “quebram” as equações de Einstein.
Verlinde
A teoria de Verlinde mistura vários conceitos para explicar que a gravidade surgiria a partir da interação microscópica entre supostas “partículas do espaço-tempo”. As partículas do espaço-tempo seriam uma espécie de unidade de informação da realidade, como os bits da computação.
Verlinde sugere que esses “bits” quânticos estão entrelaçados, o que formaria o tecido do espaço-tempo. E a gravidade emergiria da entropia dessas partículas, o princípio que desordena o Universo.
Fonte: Revista Galileu