Por Gil DePaula
O livre-arbítrio pode ser definido como o poder que possuímos de pensar e executar ações, livremente, e por decisão própria. Neste processo, não podemos esquecer que as consequências das nossas ações sempre desemborcarão em acontecimentos, que afetarão a nós mesmos e/ou a outrem, passíveis que tenhamos que responder por elas.
A Bíblia não cita o termo “livre-arbítrio”. As religiões e alguns filósofos cunharam a expressão a partir de algumas passagens do Velho Testamento, que demonstrariam que Deus permitiu ao homem que tivesse decisão própria, apesar de lhes alertar sobre o bem e o mal.
Mas realmente possuímos o livre-arbítrio? Ele nos foi dado por Deus? Ele é limitado? Se é limitado continua sendo livre-arbítrio? Vejamos o enfoque de outras correntes fora das religiões
Mas realmente possuímos o livre-arbítrio? Ele nos foi dado por Deus? Ele é limitado? Se é limitado continua sendo livre-arbítrio? Vejamos o enfoque de outras correntes fora das religiões
Durante séculos, o humanismo (movimento intelectual difundido na Europa durante a Renascença e inspirado na civilização greco-romana, que valorizava um saber crítico voltado para um maior conhecimento do homem e uma cultura capaz de desenvolver as potencialidades da condição humana) tem nos convencidos de que nós é que somos a fonte suprema de significado e que nosso livre-arbítrio é a mais alta de todas as autoridades.
Em vez de esperar que alguma entidade exterior nos diga o que é o quê, somos capazes de nos basear em nossos sentimentos e desejos. Desde a infância somos bombardeados com uma barragem de slogans de aconselhamento: “Ouça sua voz interior, siga seu coração, seja verdadeiro consigo, confie em você mesmo, faça o que achar que é bom”.
Os liberais (liberalismo: doutrina baseada na defesa da liberdade individual, nos campos econômico, político, religioso e intelectual, contra as ingerências e atitudes coercitivas do poder estatal) dão tamanho valor à liberdade individual porque acreditam que os humanos têm livre-arbítrio.
Segundo o liberalismo, as decisões de eleitores e de clientes não são nem determinísticas nem aleatórias. É claro que as pessoas são influenciadas por forças externas e eventos casuais, porém, ao final, cada um de nós pode acenar com a varinha de condão da liberdade e tomar as próprias decisões.
Por essa razão, o liberalismo dá tanta importância a eleitores e clientes e nos instrui a seguir nosso coração e ir atrás daquilo que nos faz sentir bem. É nosso livre-arbítrio que imbui o Universo de significado, e quem está de fora não pode saber como você se sente, nem predizer quais serão suas escolhas.
Em tempos passados quando estudiosos perguntavam por que um homem saca de uma faca e apunhala outro até a morte, uma resposta aceitável seria: “Porque ele fez essa escolha. Usou seu livre-arbítrio para escolher o assassinato, e é isso que o torna responsável pelo crime que cometeu”.
No decorrer do século passado, quando os cientistas abriram a caixa-preta do Sapiens, não acharam lá nem alma, nem livre-arbítrio, nem um “eu” — somente genes, hormônios e neurônios, que obedecem às mesmas leis físicas e químicas que governam o resto da realidade.
Hoje, quando estudiosos perguntam por que um homem puxa uma faca e apunhala alguém, simplesmente responder “Porque ele fez essa escolha” não será satisfatório. Em vez disso, geneticistas e neurocientistas darão uma resposta muito mais detalhada: “Ele fez isso devido a tais e tais processos eletroquímicos no cérebro, que foram configurados por uma formação genética específica, que é o reflexo de antigas pressões evolutivas aliadas a mutações casuais”.
Os processos eletroquímicos no cérebro que resultam em assassinato são determinísticos ou aleatórios, ou uma combinação dos dois — mas nunca são livres. Por exemplo, quando um neurônio dispara uma carga elétrica, isso pode ser uma reação determinística a um estímulo externo ou o resultado de uma ocorrência randômica tal como a decomposição espontânea de um átomo radioativo.
Nenhuma dessas opções deixa espaço para o livre-arbítrio. Decisões tomadas por uma reação em cadeia de eventos bioquímicos, cada um determinado por um evento anterior, certamente não são livres. Decisões resultantes de acidentes subatômicos randômicos tampouco são livres. São apenas randômicas. E, quando acidentes randômicos se combinam com processos determinísticos, tem-se resultados probabilísticos, porém isso não chega a ser liberdade.
Quando confrontadas com essas explicações científicas, as pessoas costumam afastá-las, ressaltando que se sentem livres e que agem em conformidade com sua vontade e suas decisões.
É verdade. Humanos agem de acordo com suas vontades. Se com “livre-arbítrio” você está se referindo à capacidade de agir segundo seus desejos — então, sim, humanos têm livre-arbítrio, assim como chimpanzés, cães e papagaios. Quando Louro quer um biscoito, Louro come um biscoito.
Mas a pergunta-chave não é se papagaios e humanos são capazes de agir segundo seus desejos interiores — a questão é, para começar, se podem escolher esses desejos. Por que louro quer um biscoito e não pepino? Por que eu decido matar meu vizinho irritante em vez de oferecer-lhe a outra face? Por que quero comprar o automóvel vermelho e não o preto? Por que prefiro dar meu voto a um partido de direita e não a um de esquerda? Não escolho nenhuma dessas vontades.
Sinto um desejo específico brotar dentro de mim porque esse é o sentimento criado pelos processos bioquímicos em meu cérebro. Esses processos podem ser determinísticos ou aleatórios, mas não livres.
Humanos também podem ser manipulados e é possível criar ou extinguir sentimentos complexos como amor, raiva, medo e depressão, estimulando os pontos certos no cérebro humano.
Militares nos Estados Unidos começaram recentemente a fazer experimentos mediante a implantação de chips de computador no cérebro, na expectativa de usar esse método para tratar soldados que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático.
No Hospital Hadassah, em Jerusalém, médicos foram pioneiros em um tratamento inovador para pacientes que sofrem de depressão aguda. Eles implantaram eletrodos no cérebro do paciente e os conectaram a um minúsculo computador introduzido no peito do paciente. Ao receber um comando do computador, os eletrodos utilizam correntes elétricas fracas para paralisar a área do cérebro responsável pela depressão.
O tratamento nem sempre é bem-sucedido, mas em alguns casos os pacientes relataram que o sentimento de vazio escuro que os atormentava havia desaparecido como que por magia.
Um paciente queixou-se de que vários meses após o tratamento tivera uma recaída e fora acometido de grave depressão. Ao ser examinado, os médicos descobriram a causa do problema: a bateria do computador havia descarregado. Quando trocaram a bateria, a depressão rapidamente desapareceu.
Em face de óbvias restrições éticas, os pesquisadores só implantam eletrodos em cérebros humanos em circunstâncias especiais. A maioria dos experimentos relevantes com humanos é realizada por meio de dispositivos não invasivos, parecidos com capacetes (conhecidos tecnicamente como “estimuladores transcranianos por corrente contínua”).
O capacete é dotado de eletrodos que são fixados no lado de fora do couro cabeludo. Ele produz campos magnéticos fracos e os dirige a áreas específicas do cérebro, estimulando ou inibindo atividades selecionadas.
Os militares americanos realizam experimentos com esses capacetes na esperança de aguçar o foco e incrementar o desempenho de soldados, tanto no treinamento como no campo de batalha.
Os principais experimentos são realizados no Diretório de Eficácia Humana, localizado numa base da força aérea em Ohio. Não obstante os resultados estejam longe de ser conclusivos, e embora haja mais propaganda em torno dos estimuladores transcranianos do que conquistas efetivas, vários estudos indicam que o método pode realmente melhorar a capacidade cognitiva de operadores de drones, controladores de tráfego aéreo, atiradores de elite e outros profissionais cujos deveres requeiram extrema atenção durante períodos extensos.
Sally Adee, uma jornalista da New Scientist, teve permissão para visitar uma instalação de treinamento de atiradores de elite e verificar os efeitos em si mesma. Primeiro, ela entrou em um simulador de campo de batalha sem usar o capacete transcraniano.
Sally descreve como o medo a invadiu quando viu vinte homens mascarados usando cinturões com bombas suicidas e armados com fuzis avançando em sua direção. “Para cada um que consigo matar com um tiro”, escreve Sally, “mais três atacantes aparecem do nada.
Certamente não estou atirando com rapidez suficiente, e o pânico e a incompetência fazem com que eu trave minha arma continuamente.” Felizmente para ela, os atacantes eram apenas imagens de vídeo, projetadas em gigantescas telas em torno dela. Ainda assim, ela ficou tão desapontada com seu fraco desempenho que preferiu largar o fuzil e sair do simulador.
Depois disso, Sally foi conectada ao capacete. Ela relata que não sentiu nada fora do comum, exceto um leve formigamento e um estranho gosto metálico na boca. Mas começou a acertar os terroristas um por um, fria e metodicamente, como se fosse Rambo ou Clint Eastwood. “Quando vinte deles correram para mim brandindo suas armas, eu calmamente apontei meu fuzil, fiz uma pausa para respirar profundamente e acertei o que estava mais próximo, antes de apontar para o alvo seguinte com tranquilidade. Não senti o tempo passar e de repente ouvi uma voz dizendo: ‘Bem, acabou’. As luzes se acenderam no simulador.
Naquele súbito silêncio entre os corpos que me cercavam, eu estava à espera de mais atacantes, e fico um pouco desapontada quando a equipe começa a remover meus eletrodos. Olho para cima e me pergunto se alguém adiantou o relógio. Inexplicavelmente, haviam se passado vinte minutos. ‘Quantos eu peguei?’, pergunto à assistente. Ela olha para mim zombeteiramente. “Todos eles.”
O experimento mudou a vida de Sally. Nos dias seguintes ela se deu conta de que tinha passado por uma “experiência quase espiritual… o que definia a experiência não era ter se sentido mais esperta ou ter aprendido mais depressa: o que fez o chão sumir foi que, pela primeira vez na minha vida, tudo o que havia na minha cabeça finalmente silenciou… Meu cérebro livre de inseguranças e dúvidas foi uma revelação.
De repente houve aquele silêncio incrível… Espero que você consiga me entender quando eu lhe disser que o que eu mais quis nas semanas seguintes à minha experiência foi voltar para lá e conectar-me àqueles eletrodos. Comecei também a fazer uma porção de perguntas. Quem era eu além desses gnomos zangados e amargos que povoam minha mente e me fazem fracassar por estar aterrorizada demais para tentar? E de onde vinham aquelas vozes?”.
Algumas dessas vozes repetem os preconceitos da sociedade, algumas ecoam nossa história pessoal, e algumas articulam nosso legado genético. Todas reunidas, diz Sally, criam uma história invisível que dão forma a nossas decisões conscientes de um modo que raramente percebemos.
O que aconteceria se pudéssemos reescrever nossos monólogos interiores ou, mesmo ocasionalmente, silenciá-los por completo?
O que aconteceria se pudéssemos reescrever nossos monólogos interiores ou, mesmo ocasionalmente, silenciá-los por completo?
Em 2016, os estimuladores transcranianos ainda estão nos primórdios, e não está claro se e quando irão tornar-se uma tecnologia amadurecida. Até o momento eles incrementam aptidões por breves períodos, e os vinte minutos de experiência de Sally Adee podem ser considerados excepcionais (talvez até mesmo o resultado do famoso efeito placebo).
A maioria dos estudos publicados sobre estimuladores transcranianos baseia-se em amostras muito pequenas de pessoas que os operam em circunstâncias especiais, e os efeitos e riscos de longo prazo são totalmente desconhecidos. No entanto, se a tecnologia amadurecer, ou se for descoberto algum outro método de manipulação dos padrões elétricos do cérebro, como isso vai afetar as sociedades humanas e os seres humanos?
As pessoas poderiam muito bem manipular seus circuitos elétricos cerebrais não só para atirar em terroristas, mas também para alcançar objetivos mais mundanos e liberais, como estudar e trabalhar com mais eficácia, aproveitar jogos e hobbies e ser capaz de se concentrar no que interessa em cada momento, seja matemática ou futebol.
Contudo, se e quando essa manipulação se tornar rotineira, o suposto livre-arbítrio pode tornar-se só mais um produto que se pode comprar. Você quer dominar o piano, mas toda vez que chega a hora de praticar você quer na verdade assistir televisão? Sem problema: apenas ponha o capacete, instale o software adequado, e logo estará doido para tocar piano.
Você poderia contra-argumentar que a capacidade de silenciar ou elevar as vozes em sua cabeça irá efetivamente fortalecer e não enfraquecer seu livre-arbítrio.
Atualmente, com frequência você não consegue realizar seus mais acalentados e autênticos desejos por causa de interferências externas que o distraem do seu intento. Com a ajuda do capacete da atenção e de dispositivos semelhantes, ficará mais fácil silenciar as vozes alienígenas de sacerdotes, marqueteiros, publicitários e vizinhos e focar naquilo que você quer. No entanto, a noção de que você tem seu eu único, e que, portanto, é capaz de distinguir seus desejos autênticos do de outras vozes, é somente mais um mito liberal, que pode ser desmascarado pela pesquisa científica mais recente.
Fontes de pesquisas: Bíblia, Livros de Filosofia, Livro Homo Deus.
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