Crônica: Quando o Futuro Virou Passado

Gil DePaula

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Brasília nasceu como um sonho — mas não um sonho qualquer. Foi uma utopia estatal, um gesto grandioso de engenharia e imaginação política, desenhado no vazio do cerrado como se o país pudesse ser reinventado com esquadros e promessas. Um risco no mapa, é verdade, mas também um risco de alma. Construída para ser a síntese de um Brasil moderno, eficiente e igualitário, Brasília prometia, desde o início, não apenas um novo endereço para a capital, mas um novo centro para a identidade nacional.

Aqui, entre o pó vermelho e o concreto branco, ergueu-se uma ideia: a de que era possível romper com as heranças coloniais, descentralizar o poder, e refundar a república no coração geográfico do país. Uma cidade nascida da vontade política de Juscelino Kubitschek, da genialidade geométrica de Lúcio Costa e da poesia de concreto de Oscar Niemeyer. A cidade-capital, sonhada por Darcy Ribeiro, era uma tentativa quase espiritual de dar forma ao futuro. Seus traços limpos, suas curvas futuristas e sua monumentalidade pretendiam expressar uma nação enfim reconciliada com sua grandeza possível.

Mas o tempo — sempre ele — revelou as fissuras sob o concreto. A utopia modernista, moldada com o espírito da vanguarda, não resistiu às pressões da realidade social brasileira. A Brasília real, que emergiu do sonho, tornou-se o espelho das contradições que tentava apagar. Em vez de integração, produziu segregação. Em vez de justiça, institucionalizou desigualdades. A cidade que se pretendia símbolo de um novo tempo acabou sendo engolida pelos velhos vícios nacionais.

O Plano Piloto, elegante e geométrico, parece flutuar sobre o caos que o cerca. Mas basta atravessar a ponte — ou mesmo andar um pouco além do Eixo Monumental — para enxergar a Brasília dos invisíveis: os trabalhadores que constroem, limpam, alimentam, vigiam, mas raramente decidem. São os moradores das cidades-satélites, dos condomínios informais, das periferias esquecidas. Brasília foi erguida com suas mãos, mas não os incluiu em seu sonho. Para eles, o futuro nunca chegou. Chegou, no máximo, o transporte precário, os hospitais sobrecarregados, as escolas insuficientes e uma polícia mais presente que o Estado social.

A utopia envelheceu mal porque ignorou a carne por trás do traço. A racionalidade do urbanismo, que deveria organizar a vida, acabou por hierarquizá-la. As distâncias, pensadas como símbolo de ordem e fluidez, tornaram-se barreiras sociais. A monumentalidade, que buscava representar o povo, hoje abriga um poder muitas vezes surdo à rua, ao grito, à dor. Brasília, enfim, virou símbolo do que se prometeu negar: o poder isolado, a burocracia sem rosto, a política como carreira e não como missão.

E, no entanto, a cidade ainda pulsa. Porque nela está o centro das decisões, sim — mas também o centro dos embates. Porque onde há poder, há também resistência. É ali que nascem os protestos, que se multiplicam os movimentos sociais, que ecoam as vozes dos que não se conformam. Brasília abriga a institucionalidade e a insurgência. É palácio e asfalto. É plenário e calçada.

Talvez o problema nunca tenha sido a cidade em si, mas a crença de que era possível desenhar o futuro sem encarar o passado. Que se poderia erguer um novo Brasil sem lidar com as feridas do antigo. O concreto não cura a desigualdade. A estética não redime a exclusão. O traço não substitui a escuta.

Brasília não precisa de outro plano diretor. Precisa de outra direção. De um novo pacto simbólico e ético. Um que traga para o centro da política não apenas os símbolos, mas as pessoas. Um pacto onde a beleza não esteja apenas nas cúpulas e colunas, mas também no cotidiano digno, na justiça concreta, no encontro verdadeiro entre os brasileiros.

O futuro virou passado quando o ideal foi capturado pelo interesse. Quando a cidade da esperança foi apropriada pelo poder. Mas o passado — como bem sabem os que estudam a história — não é uma prisão. É uma advertência.

E talvez, se tivermos coragem de olhá-lo de frente, Brasília possa voltar a ser mais do que cenário. Voltar a ser projeto. Voltar a ser sonho — mas, desta vez, com a imersão do povo.

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Terras dos Homens Perdidos, de Gil DePaula, é uma ficção histórica que explora a fundação de Brasília e o impacto da construção da nova capital na vida de brasileiros comuns. A narrativa é ambientada entre 1939 e 1960 e segue o drama de Maria Odete, uma mulher forte e resiliente, que relembra seu passado de desafios e desilusões enquanto enfrenta as dores do parto. Sua trajetória é entrelaçada com a história de dois fazendeiros rivais e orgulhosos, ambos chamados Antônio, que lutam pelo poder em meio a uma teia de vingança, traição e tragédias pessoais.

A obra destaca o cenário do interior brasileiro e a saga dos trabalhadores que ergueram Brasília com suor e sacrifício. Gil DePaula usa seu estilo detalhista para pintar um retrato das complexas interações humanas e sociais da época, onde paixões e rivalidades moldam o destino de seus personagens e refletem as transformações de uma nação. A obra combina realismo com uma narrativa de intensa carga emocional, capturando tanto a grandeza da construção da capital quanto as pequenas tragédias pessoais que marcaram sua fundação​.

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