O MORTO
Allan
Mais uma vez acordava com o coração palpitante e o travesseiro encharcado de suor. O pesadelo com o morto insistia em atormentá-lo, e Allan tinha consciência que os malditos sonhos começaram, depois do jantar na casa do amigo Aristides, cujo pai falecera recentemente. Nas imagens oníricas, começava se banqueteando sozinho em um local escuro, sem paredes, onde não se via o fim, tendo apenas um jato de luz em forma de cone que o iluminava, à mesa. Depois, aparecia sem conseguir comer e via sua barriga crescendo imensuravelmente para, em seguida, sentir a garganta arder. Então, uma fumaça densa e negra saía por sua boca, que depois de expelida se transformava na imagem do falecido, era quando gritava desesperadamente pelo nome de Jesus e acordava.
A repetição dos sonhos levou-o até um psicólogo, que depois de algumas consultas não conseguiu determinar a origem dos devaneios, e recomendou que ele procurasse um centro espírita.
Ruth
O vestibular adiado acabou coincidindo com a data para a viagem. Filha única, muito paparicada pela família, Ruth sempre os acompanhava. Desta vez, teria que ficar. No fundo não se importava e gostou, pois teria mais tempo para se dedicar aos estudos. Diante das preocupações, disse aos pais que desassossegassem, porque ela tomaria cuidado. Além disto, a empregada sempre estaria presente, pois dormia num cômodo anexo à casa.
No último ano, fora uma ou outra ida ao cinema, pouco se divertiu. Quando a Neuzinha a convidou para um jantar em sua residência, ali mesmo no Park Way, inicialmente, relutou um pouco, mas depois pensou: que mal fará? Lembrou-se do Ari, irmão da amiga, e decidindo-se a ir, combinou o horário.
O bom gosto da família era evidente. Móveis de madeira nobre bem esculpidos. Panos lindamente bordados, louças de porcelana e finos talheres decoravam a mesa. Acima de um belo aparador pairava, em um retrato bem emoldurado, a foto do senhor Juvenal tirada quando ele se encontrava por volta dos seus quarenta anos. Fazia somente seis meses que desencarnara com apenas cinquenta e nove anos.
O jantar serve para comemorar as dezenove primaveras de Neuzinha. Porém, era bem intimista e, apenas, treze pessoas estavam presentes. Apesar do momento festivo a conversa por várias vezes girou em torno da morte de “Seu” Juvenal, que falecera vítima de latrocínio.
Durante a refeição, Ruth estranhou um pouco o gosto salgado de alguns alimentos, porém, adorou os olhares que Ari lhe dirigia. Não simpatizou muito com Allan, que tagarelava à mesa monopolizando a conversa.
Terminado o jantar, Corina mãe de Neuzinha e viúva de Juvenal, convida os amigos para a sala de estar. Alguém se lembra de que José Morais (cunhado do falecido) canta e dedilha muito bem um violão e, atendendo a pedidos, não se faz de rogado.
No meio da música e apesar do zum-zum, Ruth escuta a conversa do casal Miguel e Priscila que acabara de conhecer. Miguel queixa-se das azias que o excessivo tempero da comida está lhe causando. A curiosidade da jovem é interrompida quando Ari senta ao seu lado e puxa assunto. O colóquio entre os dois se estende até a hora em que a moça decide voltar para casa, mas antes marcam um encontro para o próximo dia.
Quando Ruth chega a sua casa, sente-se bastante alegre. Os motivos são a paquera iniciada com Ari, e as duas taças de vinho que bebeu. Troca de roupa e vai deitar-se. Puxando a fina coberta que está aos pés da cama prepara-se para dormir. Neste momento, sente uma súbita baixa da temperatura em seu quarto, seguida por estranha sensação de uma presença que lhe arrepia o corpo. Em seguida, vê o grande espelho de- fronte à sua cama resplandecer, apresentado a imagem “viva” da foto do pai de Ari que admirara horas antes. Vê e escuta o espectro de Juvenal projetar-se do espelho e vociferar guturalmente: ME DEVOLVA… ME DEVOLVA! Rute grita, grita e grita! Até que é acudida por Irene.
Zé Morais
O arquiteto e músico nas horas vagas Zé Morais, nunca se relacionou bem com o cunhado. Desde que a irmã começou a namorá-lo, em anos que já vão longe, detestou aquela sua fixação por limpeza e o apelidou de Juvenal “Sabão”. Em contrapartida, o falecido lhe chamava de Zé “Desgrenhado”, referência a seus cabelos compridos e quase sempre despenteados, bem como a barba sempre grande e mal aparada. Enquanto, este adorava “jeans” e tênis, aquele primava no gosto pelas roupas sociais.
José Morais ficou vários anos sem frequentar a casa da irmã, e só aceitou o convite para o jantar por- que a presença de Juvenal não mais lhe incomodaria. Além disso, era uma oportunidade para se reaproximar dos parentes. Depois de tocar e cantar por mais de uma hora, desculpou-se com a irmã e a sobrinha por ter que deixá-los, pois tinha encontro marcado com amigos no Libanus, na 206 Sul, onde aproveita- ria para estender a noite.
Já passa das três horas da manhã, quando cansado e impropriamente sentindo os efeitos etílicos, Zé Morais retorna para sua casa em Taguatinga. Procura manter-se na velocidade permitida nas vias enquanto escuta “A Lista” diretamente de um CD do Oswaldo Montenegro. Quando acaba de passar pelo Guará sente uma estranha vibração no carro, e a música para de tocar. Olha para o painel e vê que o toca-CD’s permanece ligado. Ejeta o disco e torna a colocá-lo, mas o aparelho permanece mudo. Troca o CD e o problema continua. Quando ajuíza que o problema está no equipamento, sente fortes chiados e vibrações oriundas das caixas de som, e para surpresa maior parece escutar seu nome sendo chamado. Inicialmente, apenas ouve sussurros que num crescendo tornam-se claros. Em seguida, as caixas de som explodem em volume máximo: Zé Morais… Zé Morais, ME DEVOLVA! ME DEVOLVA! É quando reconhece a voz do cunhado e torna-se trêmulo, pois vê Juvenal no banco ao seu lado. Perde o controle do carro e bate num poste de iluminação pública.
JUVENAL
A morte de Juvenal, provavelmente, não teria ocorrido se não fosse pela sua fixação por limpeza. O empresário vinha de uma família pobre como tantos outros. A mania de asseio poderia se dizer que foi herdada da mãe. Dona Alda acreditava e apregoava que pobre tinha que ser limpo. Imagina – perguntava ela – se existe coisa mais feia que uma casa praticamente sem móveis, com uma geladeira, fogão velhos e ainda sujos? E respondia: Só bater em mãe! E se ria.
Na infância detestava as brincadeiras que lhe deixassem sujo, o máximo que se permitia era um jogo de bolinhas de gude. Na escola os colegas curtiam uma brincadeira chamada “metadinha”, onde uns abocanhavam os lanhes dos outros. Daquilo Juvenal não brincava, pois tinha nojo.
Quando rapaz teve dificuldades para arranjar namoro. Só tinha olhos para aquelas que sempre estivessem bem asseadas. Por sorte encontrou Corina, que se não tinha seus exageros, primava pela organização e cuidados com a aparência.
Por obra e graça do destino (ou por piada), tornou-se empresário do ramo de recolhimento de lixo. Começou como funcionário e um prêmio que recebeu após acertar a Quina com mais três ganhadores, lhe permitiu tornar-se sócio da empresa, que tinha como principal cliente o Serviço de Limpeza Urbana de Brasília.
Da morte não tinha medo, mas imaginar os bichos lhe comendo e sua carne apodrecendo lhe causava arrepios. Por isto, determinou a família que quando morresse fosse cremado, e que suas cinzas fossem conservadas num local limpo e arejado.
No dia em que faleceu saía da sede da empresa no SIA e se dirigia ao seu carro, quando foi abordado por dois pivetes armados que anunciaram o assalto. Inicialmente, não esboçou nenhuma reação e se dispôs a entregar a carteira, mas quando um dos pivetes meteu a mão em seus peitos, sujando a bem cortada camisa branca que usava, perdeu as estribeiras e devolveu o tapa, em consequência, levou um tiro na cabeça tendo morte instantânea. Como pediu, foi cremado.
Miguel
Desde rapaz Miguel se interessava pelas coisas do espiritismo. Além de leitor assíduo dos livros psicografados por Chico Xavier, vez por outra, frequentava o centro espírita André Luiz no Guará. Era um médium sensitivo dotado da capacidade – de algumas vezes – escutar a comunicação dos espíritos. No dia seguinte ao jantar na casa da amiga Corina, ouviu vozes que identificou como sendo do amigo Juvenal. No começo, achou confuso, porém, logo depois, sentiu claramente as palavras do falecido, que assim se lamentava: Miguel, minha família me traiu. Estou sujo Miguel! Parecendo cobrar alguma coisa numa ladainha que se repetia todos os dias.
Percebendo que o espírito não lhe deixava em paz, e mesmo receando que a amiga não lhe desse ouvidos, ligou para Corina e lhe relatou o que andava escutando, depois que esteve em sua residência. Em contrapartida, Corina lhe explana os fatos estranhos que aconteceram após aquele dia. Conta das aparições do morto para as pessoas que participaram do jantar. Fala do acidente de Zé Morais que felizmente está bem. Relata que a menina Ruth está com os nervos em frangalho, pois segundo ela continua a ver e ouvir Juvenal, tendo que dormir sempre acompanhada por alguém. Termina pedindo que o amigo lhe ajudasse, visto que, o sabe espírita.
Depois de algumas consultas a médiuns do centro espírita, Miguel vai à casa de Corina, e a convence de realizar uma nova reunião com todas as pessoas que participaram do jantar, visando à realização de um trabalho espírita onde o morto seria convocado a explicar o que lhe afligia e o que queria. Para tanto, se faria presente um médium mais experiente.
No dia aprazado, numa quarta-feira, lá estão todos reunidos na casa de Corina. Ninguém se atreveu a faltar, pois o receio do morto ainda persegui-los era grande.
O Dr. Alex, assim nomeado por ser médico, é espírita de longa data e um médium qualificado. Quando Miguel lhe solicitou para ajudar na resolução daquele caso, solicitou que todos não deixassem de comparecer, bem como que viessem vestidos de branco.
Na mesma sala de jantar se reúnem as treze pessoas que estiveram ali da última vez, agora acompanhadas do médium. Sobre a toalha branca que cobre a mesa são colocados quatorze copos e sete velas que iluminam a sala. À frente de Alex é colocada uma jarra branca com água. Impondo suas mãos sobre o vasilhame o espirita, para fluidificar a água, diz uma prece: Senhor, Pai Celestial, lembrando a passagem no livro do laborioso discípulo João, em que Jesus nos ensina e à mulher samaritana, que qualquer um que beber da água de um poço voltará a ter sede, mas aquele que beber da água que for dada por Ele nunca terá sede, porque a água recebida se fará em quem a bebe, uma fonte para a vida eterna, lhe rogamos que purificai a água a nossa frente, para que tomando-a nossos irmãos aqui presentes possam se livrar das impurezas materiais. Rogamos ainda Senhor, que derrame sua luz sobre todos nós, bem como ao irmão ausente Juvenal. Que neste momento o irmão possa se fazer presente e nos dizer o que o aflige, para ajudá-lo a se desprender do mundo terrestre e alcançar a paz da vida espiritual. Conforme seja vossa vontade.
Depois da prece, enchem os copos de água fluidificada, e todos a bebem.
Perguntando a Miguel se estava pronto e recebendo o sinal de positivo, Alex lhe impõe as mãos. Em poucos segundos o amigo da família fecha os olhos e demonstra estar em transe. O médico então lhe inquiri:
— Estais presente irmão Juvenal?
A voz que responde pela boca de Miguel não deixa dúvidas de quem é, e todos a escutam estupefatos:
— Sim! Me faço presente a este lar de tratantes.
— Gostaríamos irmão que nos explicasse a razão de palavras tão contundentes. Afinal, o irmão sabe que desencarnou e não deveria estar aqui. Deve saber também que era amado por seus familiares.
— Vivi uma vida regrada – continua o espirito de Juvenal – que primava pela correção e asseio do corpo, já que este é a casa do espirito quando encarnado. Em minha reencarnação anterior a esta da qual fui brutalmente desligado eu era um mendigo. Andei durante anos todo sujo, maltrapilho e faminto. Antes de voltar novamente ao orbe terrestre assumi o compromisso pessoal de que esse fato não se repetiria, e enquanto estava na matéria cumprir religiosamente o que me propus. A única coisa que pedi a minha família era ser cremado após a minha morte física, e que minhas cinzas fossem conservadas em local limpo e arejado, pois mesmo depois de abandonar o corpo não o queria sujo, apodrecido e comido por insetos e vermes. Entretanto, nem isso foram capazes de fazer e contaram com a conivência desses malditos aqui presentes.
— O irmão por certo está enganado – apazigua Alex –, pois Corina sua esposa disse-me que suas cinzas estão conservadas em local seguro e limpo.
— Enganado! Enganado! – Exclama a perturbada alma – Peça que as mostre.
— Corina – diz o médium – pode nos trazer as cinzas do seu esposo?
Corina, que apresenta estar mais perturbada que todos, responde trêmula:
— O pote de porcelana com as cinzas de Juvenal estão aqui no aparador. Vou pegar!
Trazendo o recipiente, o deposita na frente do médium que o abre e retira um pouco do seu conteúdo que para surpresa geral é branco. Alex, intrigado, prova-o com o dedo indicador e olhando para todos diz:
— É sal!
Corina parece não acreditar, mas também prova e se rende as evidências. Logo percebe que só quem poderá explicar aquilo é Maria Helena, a empregada, que por sorte está em casa, pois Corina lhe pediu que ficasse para ajudar a receber as pessoas naquele dia, tendo combinado lhe pagar as horas-extras. Pede a Neuzinha que vá chamá-la.
Uma desconfiada Maria Helena adentra a sala e Corina lhe pergunta mostrando o recipiente onde deveriam estar as cinzas de Juvenal:
— Maria você pode explicar o que aconteceu a este pote?
— Nada Dona Corina. Eu só coloquei sal.
— Mas o que você fez com as cinzas que estavam aqui dentro criatura?
— Cinzas? – repete a mulher espantada – Eu usei para temperar a comida no dia do aniversário de Neuzinha. Naquele dia eu não encontrei o sal, provei do que tinha aí e achei que servia. Bem que depois achei o gosto esquisito e joguei fora o resto.
Corina desmaia. Ruth vomita.