Fumar era normal. As pessoas acendiam o primeiro cigarro logo ao acordar, e repetiam o gesto dezenas de vezes durante o dia, em absolutamente todos os lugares: lojas, restaurantes, escritórios, consultórios, aviões (tinha gente que fumava até no chuveiro).
Ficar sem cigarro, nem pensar – tanto que ir sozinho comprar um maço para o pai ou a mãe, na padaria da esquina, era um rito de passagem para muitas crianças. O cigarro estava na TV, nos filmes, na música, na propaganda (nos EUA, ficou famoso um anúncio que dizia: “Os médicos preferem Camel”). 30% a 40% da população, dependendo do país, fumava.
O Mais Viciante
O Mais Viciante
O cigarro foi, em termos absolutos, a coisa mais viciante que a humanidade já inventou. Hoje ele é execrado, com razão, e cenários assim são difíceis até de imaginar. Olhamos para trás e nos surpreendemos ao perceber como as pessoas se deixavam escravizar, aos bilhões, por algo tão nocivo. Enquanto fazemos isso, porém, vamos sendo dominados por um vício ainda mais onipresente: o smartphone.
Quatro bilhões de pessoas, ou 51,9% da população global, têm um, de acordo com uma estimativa da empresa sueca Ericsson. E o pegam em média 221 vezes por dia, segundo uma pesquisa feita pela consultoria inglesa Tecmark. O número de toques diários no aparelho é ainda mais impressionante: são 2.600, segundo a empresa de pesquisa Dscout Research. O smartphone já vicia mais gente, e de forma mais intensa, do que o cigarro.
A Diversão Manipulada
A Diversão Manipulada
Vivemos grudados em nossos smartphones porque eles são úteis e divertidos. Mas o que pouca gente sabe é o seguinte: por trás dos ícones coloridos e apps de nomes engraçadinhos, as gigantes da tecnologia fazem um esforço consciente para nos manipular, usando recursos da psicologia, da neurologia e até dos cassinos. “O smartphone é tão viciante quanto uma máquina caça-níqueis”, diz o americano Tristan Harris. E o caça-níqueis, destaca ele, é o jogo que mais causa dependência: vicia três a quatro vezes mais rápido que outros tipos de aposta.
Harris trabalhou quase cinco anos no Google, primeiro como programador e depois como “especialista em ética de design”: a pessoa encarregada de garantir que os apps e serviços do Google não fossem manipulativos ou viciantes. Em 2016, saiu da empresa para criar uma ONG, que se chama Center for Humane Technology e reúne programadores alarmados com o impacto da indústria da tecnologia. “Estamos colocando toda a humanidade no maior experimento psicológico já feito, sem nenhum controle.
A Persuasão Pela Internet
A Persuasão Pela Internet
A internet é a maior máquina de persuasão e vício já construída”, diz o programador Aza Raskin. Você provavelmente nunca ouviu falar dele, mas Raskin é famoso no Vale do Silício. Isso porque, em 2006, ele inventou o que viria a se tornar um dos elementos mais fundamentais (e viciantes) dos smartphones: a “rolagem infinita”. Sabe quando você vai descendo pela tela e o conteúdo nunca termina, pois vai aparecendo mais? Trata-se da rolagem infinita, que torna mais prático o uso do smartphone – mas também mexe com a sua cabeça. “Se você não dá tempo para o seu cérebro acompanhar os seus impulsos, simplesmente continua rolando para baixo”, diz Raskin.
Ele não imaginava o poder viciante de sua criação, e hoje se arrepende dela – tanto que é um dos fundadores do Center for Human Technology. “A pergunta que nós nos fazemos no Vale do Silício é: estamos programando apps ou pessoas?”, diz. “Só Deus sabe o que estamos fazendo com o cérebro das crianças”, afirmou Sean Parker, um dos fundadores e primeiro CEO do Facebook, num debate em 2018. “Nós exploramos uma vulnerabilidade da psicologia humana. Eu, Mark (Zuckerberg), Kevin Systrom (criador do Instagram), todos nós entendemos isso, conscientemente, e fizemos mesmo assim”, afirmou.
Não Será Tudo Isso um Exagero?
Não Será Tudo Isso um Exagero?
Você deve estar pensando: será que não tem um certo exagero nisso? Afinal, você não controla o uso que faz do smartphone, e pode tranquilamente deixá-lo de lado, certo? Mais ou menos. Primeiro, você provavelmente é bem mais dependente dele do que imagina, na prática é difícil conter o uso do celular.
Foi o que constatou uma pesquisa feita pela consultoria Deloitte com 2 mil brasileiros. 30% das pessoas disseram que têm problemas com o uso excessivo do smartphone, como dificuldade de concentração ou insônia, e 32% já tentaram maneirar – sem sucesso. Uma pesquisa do Hospital Samaritano de São Paulo revelou que oito em cada dez motoristas usam celular enquanto dirigem, embora 93% deles reconheçam que isso é perigoso.
A Epidemia da Distração
A Epidemia da Distração
É por isso que boa parte das pessoas está sempre com a cara enterrada na tela, mesmo nos momentos mais impróprios para isso: atravessando a rua, na praia, num show, etc. “Está havendo um sequestro da atenção, da consciência, da perspectiva de você se conectar com o mundo à sua volta. Uma epidemia da distração”, diz o psicólogo Cristiano Nabuco de Abreu, coordenador do Grupo de Dependência Tecnológica do Hospital das Clínicas (USP).
Estudos mostram que o uso excessivo de smartphone está ligado ao aumento das taxas de ansiedade, depressão e déficit de atenção, inclusive com alterações na estrutura do cérebro. Os sintomas começam a se manifestar quando a pessoa gasta mais de três horas por dia no celular, e nós já passamos disso: o brasileiro gasta em média 3h10 diárias nessa atividade, segundo o relatório State of Mobile 2019, da empresa americana App Annie.
A chave de tudo isso está na chamada user experience (“experiência do usuário”), ou simplesmente UX. Essa área, que cuida da interação das pessoas com apps, sites e plataformas digitais, explodiu nos últimos anos: 87% das empresas, segundo uma pesquisa feita pela Adobe, pretendem contratar mais especialistas em UX – carreira que paga os maiores salários do setor de software. É uma das profissões mais novas que existem. Mas a raiz do vício em smartphone, na verdade, é bem antiga.
Recompensa Variável
Recompensa Variável
Burrhus Frederic Skinner era um sujeito espertinho. Na faculdade que ele entrou, a Hamilton College, em Nova York, o trote universitário consistia em amarrar o calouro a um poste e deixá-lo lá durante a noite. “B.F.”, como se tornaria conhecido, teve a ideia de esconder uma gilete dentro do sapato, que usou para cortar a corda. Ele queria ser escritor, mas acabou se formando em psicologia e virou professor da Universidade Harvard. Skinner acreditava que todos os pensamentos e comportamentos de um indivíduo, sem exceção, são determinados pelas experiências que ele já teve – e, portanto, podem ser condicionados.
Para tentar provar isso, Skinner fez uma série de experiências com ratos de laboratório nos anos 1950. Colocou ratos em gaiolas com uma alavanca que, quando pressionada, liberava comida. Mas havia um porém: Ao acionar a alavanca, os animais às vezes ganhavam um prêmio grande, ou seja, várias guloseimas. Às vezes ganhavam um prêmio mixuruca (pouca comida), e às vezes não ganhavam nada.
Skinner fez vários ajustes nessa proporção, para tentar entender como ela influenciava o comportamento de vários grupos de ratos. E aí veio a descoberta: os ratos que tocavam a alavanca com mais avidez não eram aqueles que mais ganhavam guloseimas, e sim aqueles que recebiam o prêmio de forma inconstante. Quanto mais variável a programação, e mais incerto o prêmio, maior era a compulsão. Skinner batizou o fenômeno de “programação variável de recompensas”.
Caça-Níqueis
Caça-Níqueis
As máquinas de caça-níqueis funcionam exatamente assim. A pessoa puxa a alavanca e às vezes ganha moedas, outras vezes nada. Isso aumenta o desejo de continuar jogando. Com o smartphone, a lógica é a mesma: porque você nunca sabe ao certo quantas unidades de conteúdo (posts, fotos, likes etc.) irá receber. “Para maximizar o vício, tudo o que os designers de apps precisam fazer é vincular uma ação do usuário a uma recompensa variável”, diz Tristan Harris.
Quando você entra no Instagram, por exemplo, pode receber várias fotos novas dos seus amigos; ou nenhuma. No Facebook, pode encontrar novos likes e comentários naquele seu post… ou nada. Essa alternância maximiza a dependência. “Quando desbloqueamos o celular e deslizamos o dedo para atualizar nosso e-mail ou ver a foto seguinte numa rede social, estamos jogando caça-níqueis com o smartphone”, afirma Harris.
“As recompensas variáveis parecem manter o cérebro ocupado, desarmando suas defesas e criando uma oportunidade para plantar as sementes de novos hábitos. Estranhamente, nós percebemos esse estado de transe como divertido”, diz o desenvolvedor Nir Eyal no livro Hooked: How to Build Habit-Forming Products (“Fisgado: como construir produtos que formam hábitos”, inédito no Brasil). “Isso acontece porque nosso cérebro está programado para procurar incessantemente pela próxima recompensa.”
Esse mecanismo funciona graças à ação da dopamina. O cérebro libera doses desse neurotransmissor quando comemos algo gostoso, fazemos exercício ou interagimos com outras pessoas.
Fonte: Superinteressante
Livros de Gil DePaula
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