O Mundo é um Moinho, de Cartola
O Mundo é um Moinho, de Cartola
Canção de abertura de um dos melhores discos de samba já gravados (“Cartola II”, de 1976), “O Mundo é um Moinho” dá a exata dimensão da genialidade de Cartola.
Ao aconselhar a filha, que afirmava o desejo de sair de casa para se prostituir, consagrou em versos o anúncio pungente de um mundo perigoso, nem um pouco acolhedor. O moinho é a máquina pesada da vida, que não hesita em triturar os sonhos, que não apieda as ilusões de quem, inda muito jovem, é incapaz de avaliar a gravidade das consequências de suas próprias decisões.
Embora tenha escrito o samba para a enteada, arrisco-me a dizer que o próprio Cartola foi vítima desse moinho impiedoso, já que só na velhice o sambista obteve o reconhecimento de público e crítica merecidos, após uma vida de muita pobreza no Rio de Janeiro.
Brasil Pandeiro, de Assis Valente
Brasil Pandeiro, de Assis Valente
O ufanismo na música é terreno perigoso. Corre-se sempre o risco de cair na armadilha do orgulho artificial, próprio ao gênero hínico. Compor nesse campo, portanto, é muito difícil, o que só aumenta a importância deste samba de Assis Valente.
Registrado como faixa de abertura do disco “Acabou Chorare”, de 1972, do grupo Novos Baianos, “Brasil Pandeiro” é uma das mais inspiradas declarações de amor ao País. A letra brinca com o interesse estrangeiro pela cultura brasileira.
E o faz de propósito, harmonizando-se à direção musical ousada de um álbum concebido justamente para fundir influências musicais externas (a guitarra elétrica do rock) a outras tipicamente nacionais (o ritmo do samba, a batida bossa-novista ao violão).
E foi essa coragem experimental dos Novos Baianos que tornou “Acabou Chorare” um disco de MPB obrigatório, ao passo que transformou “Brasil Pandeiro” num hino nacional em ritmo de samba.
Luar do Sertão, de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco
Luar do Sertão, de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco
“Luar do Sertão” é uma das mais bonitas composições da música popular brasileira. Regravada sucessivas vezes, nem sempre há quem recorde seus compositores: Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco (que, junto com Dilermando Reis, foi um dos mais importantes violonistas brasileiros no século 20).
Ao que tudo indica, “Luar do Sertão” foi composta em 1911. Sua letra, que é de uma simplicidade ímpar, contém forte inspiração nordestina, folclórica, e narra o sentimento nostálgico do sertanejo brasileiro.
Tristeza do Jeca, de Angelino Oliveira
Tristeza do Jeca, de Angelino Oliveira
Muito antes de empresários inescrupulosos associarem o termo “sertanejo” ao “universitário”, para denominar um dos mais vergonhosos embustes já surgidos na história da música brasileira, duplas como Pedro Bento & Zé da Estrada, Tião Carreiro & Pardinho, Milionário & José Rico, Tibagi & Miltinho lançavam mão da viola para cantar as agruras e alegrias do campônio brasileiro.
A música que faziam denotava a legítima riqueza cultural do interior do País — muita vez injustamente ignorada pela população urbana. Assim, composições como “Chico Mineiro”, “Chalana”, “Cabocla Tereza”, “Saudade da Minha Terra”, “Mula Preta”, “Moda da Pinga”, “Rio de Lágrimas”, “Preto de Alma Branca”, “Canarinho do Peito Amarelo”, “O Menino da Porteira”. tornaram-se clássicos absolutos da música sertaneja nacional.
Mas o clássico dos clássicos da música caipira pertence a Angelino Oliveira, que compôs “Tristeza do Jeca”, sob a inspiração do famoso personagem Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato no seu romance “Urupês”. “Tristeza do Jeca” é, assim, um dos mais fidedignos retratos do sertanejo brasileiro, ainda mais quando escutada na interpretação inconfundível daquela que foi a maior dupla sertaneja de todos os tempos: Tonico & Tinoco.
Se Ela Perguntar, de Dilermando Reis e Jair Amorim
Se Ela Perguntar, de Dilermando Reis e Jair Amorim
Dilermando Reis foi um dos mais importantes músicos brasileiros do século 20. Apesar disso, mesmo em listas elaboradas por críticos musicais renomeados, não é comum que suas composições sejam citadas.
Creio que isso se explique, ao menos em parte, pela circunstância de que muitos, ainda hoje, consideram-no tão somente como o grande violonista brasileiro. De fato, posto que Dilermando tenha se notabilizado sobretudo como instrumentista, sua vasta obra inclui também parcerias com outros compositores, como nesta valsa famosa, “Se Ela Perguntar”, cuja letra vai assinada por Jair Amorim.
A canção ficou famosa como faixa do álbum “Uma Voz e um Violão em Serenata”, gravado em 1962 pela dupla inesquecível que Dilermando, grande seresteiro que era, formou com o cantor Francisco Petrônio. Penso que a valsa “Se Ela Perguntar” é duplamente importante para a música brasileira: de um lado, porque sua lindíssima melodia tornou-a de per si peça obrigatória no repertório de qualquer violonista erudito; de outro, porque a letra registra a nostalgia duma época em que um homem apaixonado, no afã de declarar seu amor a uma mulher, empenhava-se em fazê-lo de maneira poética, invulgar, a valorizar a riqueza das palavras — situação diametralmente oposta ao que se ouve hoje nas rádios brasileiras…
Clube da Esquina nº 2, de Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges
Clube da Esquina nº 2, de Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges
1972 foi definitivamente um dos anos mais importantes para a história da MPB. No mesmo ano em que “Acabou Chorare” vinha à luz, outra obra-prima do cancioneiro nacional era lançada: “Clube da Esquina”.
Combinando ricos arranjos instrumentais à belíssima voz de Milton Nascimento (mas que não é o único a cantar no álbum), o disco é um desfile de joias (“Tudo Que Você Podia Ser”, “Cais”, “O Trem Azul”, “Paisagem da Janela”).
Destaquei a “Clube da Esquina nº 2”, canção que tem história curiosa. Originalmente lançada apenas em versão instrumental, com Nascimento a revelar-se um grande melodista, a composição posteriormente recebeu a contribuição de Márcio Borges, que escreveu a letra.
E foi assim que, em 1970, enquanto John Lennon declarava em “God” que “o sonho acabou”, no Brasil, o Clube da Esquina respondia: “Sonhos não envelhecem”.
Construção, de Chico Buarque
Construção, de Chico Buarque
Na sua “Crítica da Razão Prática”, o filósofo alemão Immanuel Kant defendeu a tese de que, quando uma coisa tem preço, pode-se substituí-la por outra equivalente; mas quando uma coisa está acima de qualquer preço, não permitindo equivalência, significa que ela tem dignidade.
A canção “Construção”, de Chico Buarque, faixa do álbum homônimo de 1971, insere-se nesse contexto. Não porque o compositor tenha pretendido fazer uma canção sobre a filosofia moral kantiana, mas sim porque se trata de uma crítica contundente à situação do operariado brasileiro durante a década de 1970. Em “Construção”, Chico Buarque denuncia a falsa promessa do “milagre econômico” brasileiro, o engodo com que a ditadura militar mascarava as péssimas condições de vida do trabalhador, desumanizando-o, tornando-o um meio (uma engrenagem) para um fim (o crescimento econômico).
Em estrofes cuidadosamente pensadas, alternando palavras conforme muda o estado psicológico do protagonista, Chico descreve a saga de um operário da construção civil. Pressionado a vender sua mão de obra em condições de trabalho indignas, ele sai de casa para trabalhar ciente de que vai aos andaimes como quem vai ao encontro da morte. No final, morre como um pacote, atrapalhando o tráfego e o público. É que esse trabalhador não tem dignidade, tem preço.
Errare Humanum Est, de Jorge Ben Jor
Errare Humanum Est, de Jorge Ben Jor
Na introdução de “Eram os Deuses Astronautas?”, o suíço Erich von Däniken escreve: “Há algo de errado no passado longínquo, que dista de nós milhares e milhões de anos. Esse passado repleto de deuses desconhecidos, que visitaram a Terra primitiva em espaçonaves tripuladas…” É inspirado nessa obra que Jor Ben Jor faz de “Errare Humanum Est” uma das faixas icônicas do seu trabalho mais importante: “A Tábua de Esmeralda”, de 1974.
Só a originalidade experimental de fundir o samba a elementos do rock, agregando a essa mistura rítmica um clima cósmico-espacial, já valeria a ouvida desse disco. Mas a “alquimia musical” de Jor Ben vai além. Depois de homenagear a espagíria de Paracelso em “O Homem da Gravata Florida”, abebera-se na especulação de Von Däniken e consagra “Errare Humanum Est” como uma das mais emblemáticas representações das incertezas que circundam a exploração do cosmo pelo homem. Além da versão original de Jorge Ben Jor, vale a pena conferir também a regravação feita pelo paraibano Zé Ramalho.
A Banca do Distinto, de Billy Blanco
A Banca do Distinto, de Billy Blanco
Ao escolher “A Banca do Distinto”, é mui provável que esteja a ser influenciado pela minha atividade profissional, já que, no meio forense, convivendo com juízes, promotores, ministros de tribunais, não raro me deparo com esses “orgulhosos doutores cheios de pose que não falam com pobre, não dão mão a preto, não carregam embrulho”.
Seja como for, o paraense Billy Blanco foi um compositor de relevo, porém nem sempre lembrado em listas. Notável por suas parcerias com grandes nomes da música brasileira (Tom Jobim, João Gilberto, Baden Powell, Sebastião Tapajós), Blanco legou em “A Banca do Distinto” uma das mais poderosas críticas à arrogância e à soberbia humanas. Eis aí um potente soco no estômago de quem se julga “gente diferenciada”, mas é incapaz de perceber que “todo mundo é igual quando a vida termina”.
Poder da Criação, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro
Poder da Criação, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro
O filósofo Étienne Gilson, no seu livro seminal “Introdução às Artes do Belo”, escreveu que “O testemunho dos artistas, porém, está longe de ser dispensável. Muito pelo contrário, é naquilo que dizem sobre a arte que estão os mais profundos e verdadeiros pareceres sobre a criação artística (…).” Essa afirmação faz todo o sentido quando se ouve “Poder da Criação”.
Trata-se de samba oriundo da bem sucedida parceria que João Nogueira firmou com o poeta Paulo César Pinheiro. O resultado é uma reflexão sofisticada sobre a imponderabilidade racional da criação artística, sobre como a inspiração criativa muita vez surge, inesperada e incontrolável, na vida do poeta. Dessa forma, “Poder da Criação” é um samba que flerta, ainda que involuntariamente, com algumas correntes da filosofia da arte. E o faz brilhantemente!
Aquarela, de Toquinho, Vinicius De Moraes, G. Morra e M. Fabrizio
Aquarela, de Toquinho, Vinicius De Moraes, G. Morra e M. Fabrizio
Toquinho tem uma carreira das mais sólidas na música popular brasileira. É músico respeitado, reconhecidamente um grande violonista. Mas é também um compositor de mão cheia, como prova “Aquarela”, composição que remete aos idos de sua conhecida parceria com o poeta Vinicius de Morais. “Aquarela”, assim, combina o talento de um grande melodista com a do letrista perspicaz, que reproduz lindamente em versos a infinitude do poder da imaginação. Curiosamente, há muitos que veem “Aquarela” como uma canção infantil.
Oxalá então as crianças brasileiras ponham-se a cantar essa canção. É um estímulo e tanto à inteligência dos infantes.
Índios, da Legião Urbana
Índios, da Legião Urbana
Há muitos críticos que torcem o nariz para a qualidade musical da Legião Urbana. De fato, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá sempre foram instrumentistas sofríveis, distantes anos-luz dos grandes músicos brasileiros.
Mas a Legião Urbana nunca foi uma banda que se propôs a fazer um rock virtuoso. Pelo contrário, influenciados pelo punk rock, sua proposta sempre foi a de fazer música simples, que falasse direto ao coração. Situada a banda nesse contexto, é correto afirmar que ninguém foi maior do que eles na capacidade de traduzir em canções os sentimentos da juventude urbana que, na década de 1980, crescia em meio às incertezas advindas do fim da ditadura militar e da reconstrução democrática do País — e que se utilizava do rock nacional como receptáculo dessas emoções aflitivas.
Mérito, sobretudo, de Renato Russo, líder da banda e seu principal letrista, dono de um talento criativo extraordinário, como provam canções como “Eduardo e Mônica”, “Faroeste Caboclo”, “Tempo Perdido” e esta “Índios”, que, ao propor uma comovente e desesperada reflexão sobre a fragilidade humana, parece-me ser sua composição mais bonita.
Tempos Modernos, de Lulu Santos
Tempos Modernos, de Lulu Santos
Quem disse que não é possível fazer música pop com inteligência? Quem disse que, para falar a linguagem do jovem brasileiro, é preciso valer-se de letras pobres, cheias de alusões machistas, sexualmente maledicentes, vulgarizando o corpo da mulher? Pois a sólida carreira que há muitos anos Lulu Santos desenvolve está aí para provar o contrário.
Guitarrista competente, Lulu é um notável criador de hits radiofônicos (“Apenas Mais Uma de Amor”, “Um Certo Alguém”, “Como Uma Onda”, “Sereia”). Seu pop rock não subestima a inteligência do seu público, que ainda hoje integra muita gente jovem. Uma boa mostra do seu talento como compositor é “Tempos Modernos”, canção otimista (“Eu vejo um novo começo de era, de gente fina, elegante, sincera”) que abre seu disco homônimo de estreia, de 1982.
Sangrando, de Gonzaguinha
Sangrando, de Gonzaguinha
Sempre que me pedem para apontar uma tragédia brasileira, não hesito em apontar o acidente automobilístico que, em 1991, vitimou Gonzaguinha.
Nem poderia ser diferente. Um artista que ostenta no currículo composições como “O Que é, o Que é?”, “Um Homem Também Chora (Guerreiro Menino)” e “Lindo Lago do Amor” certamente é merecedor de um lugar destacado no panteão dos compositores da MPB.
Mas é em “Sangrando” que se pode ter uma ideia do quão grande foi a perda, para a música popular, oriunda da sua morte repentina. Como a própria letra indica, “Sangrando” é daquelas canções que transbordam raça e emoção. Definitivamente, trata-se de uma das mais belas declarações de amor já escritas na história da MPB.
Sabor Açaí, de Nilson Chaves e João Gomes
Sabor Açaí, de Nilson Chaves e João Gomes
Poucos países são tão ricos culturalmente quanto o Brasil. País de dimensões continentais, cada rincão guarda sua peculiaridade, seu ritmo próprio, seu sotaque diferencial. Infelizmente, a riqueza que advém dessa diversidade nem sempre chega ao grande público. Caso exemplar disso é a Amazônia, região de que todos ouvem falar, reconhecem sua importância, mas que quase nunca desperta o interesse verdadeiro de alguém (às vezes, nem mesmo dos moradores da região). Tal cenário é lamentável em todos os sentidos.
A cultura amazônica é riquíssima — e o Brasil precisa descobri-la urgentemente, libertando-se do preconceito que circunda a região. Nesse sentido, entre os grandes artistas que vêm do Norte do País, destaca-se o cantor Nilson Chaves. Instrumentista talentoso, uniu-se ao poeta João Gomes e compôs “Sabor Açaí”, verdadeiro hino da cultura paraense, ao descrever a importância do açaí para a população amazônica e, em especial, para a cultura marajoara.
Ao ouvir essa belíssima composição, de ricas tintas regionais, é impossível não se questionar: assim como ocorre no Estado do Pará, quantos outros grandes artistas da MPB existem nos diferentes Estados do País? Quantos deles apenas esperam a oportunidade que lhes permitirá ter o talento descoberto pelo grande público? Definitivamente a música popular brasileira ainda precisa descobrir o próprio Brasil.