Um rio da Região Serrana, nas proximidades do distrito de Itaipava, foi o destino dos corpos das vítimas da Casa da Morte de Petrópolis. E nada foi feito sem o conhecimento prévio dos generais do regime militar. Em 20 horas de depoimento à Comissão Estadual da Verdade, o coronel reformado Paulo Malhães, de 76 anos, um dos mais atuantes agentes do Centro de Informações do Exército (CIE) nos anos de chumbo, finalmente deu as respostas perseguidas há décadas.
Ele também confirmou ter desenterrado e sumido com o corpo do ex-deputado Rubens Paiva, morto sob torturas em janeiro de 1971, e explicou como a repressão fazia para apagar os vestígios de suas vítimas.
o Método
o Método
Um dos trechos marcantes do depoimento é o método de desaparecimento. Para evitar o risco de identificação, as arcadas dentárias e os dedos das mãos eram retirados. Em seguida, o corpo era embalado em saco impermeável e jogado no rio, com pedras de peso calculado para evitar que descesse ao fundo ou flutuasse. Além disso, o ventre da vítima era cortado para impedir que o corpo inchasse e emergisse. Assim, seguiria o curso do rio até desaparecer.
Sobre Rubens Paiva, Malhães disse que lançou o corpo no mar. À Comissão da Verdade do Rio (CEV), contou que o destino do ex-deputado foi o mesmo rio da Região Serrana onde foram jogados outros desaparecidos políticos.
No domingo, O GLOBO publicou, sob o compromisso de sigilo de fonte, o relato de Malhães sobre a operação que desenterrou o corpo de Rubens Paiva no Recreio dos Bandeirantes e o lançou ao mar, em 1973.
Porém, o próprio coronel decidiu assumir publicamente o seu papel no episódio. Ele disse que o corpo foi enterrado inicialmente no Alto de Boa Vista e, posteriormente, levado para o Recreio, de onde o retirou, por ordens do gabinete do ministro do Exército (na época, Orlando Geisel), porque havia risco de vazamento da sua localização dentro da própria repressão.
Veja as principais revelações do depoimento de Malhães sobre a Casa da Morte
Veja as principais revelações do depoimento de Malhães sobre a Casa da Morte
Inês Etienne, a sobrevivente: “Foi decretada a morte dela, mas com fins políticos. Tinha que ser um membro do gabinete do ministro do Exército a fazer, matá-la, para eles — os próprios caras que tiveram a ideia —, tornarem isto público, o ministro cair e subir outro general de Exército que levaria um time todo grande a ser general.”
Casa da Morte de Petrópolis: “E nós não tínhamos só um (aparelho clandestino) em Petrópolis. Nós tínhamos outros mais desviados. Nós queríamos um lugar que fosse tranquilo, que fosse calmo. E a casa de Petrópolis era o ideal. O CIE (Centro de Informações do Exército) tinha controle daquilo. Sabia o que se passava por ali.”
Outro aparelho em Petrópolis
Outro aparelho em Petrópolis
“O aparelho (Casa da Morte) foi transferido. Foi para um (local) que era mais afastado, em Itaipava, uma casa até bonita, na beira do rio. Deve existir. Não funcionou muito tempo não, aí já estava esse negócio de vai, não vai, fica e não fica, o melhor é apagar isso do mapa. Era alugada por algum de nós, mas com outro nome.”
Desaparecimentos de corpos: “Jamais se enterra um cara que você matou. Se matar um cara, não enterro. Há outra solução para mandar ele embora. Se jogar no rio, por exemplo, corre. Como ali, saindo de Petrópolis, onde tem uma porção de pontes, perto de Itaipava. Não (jogar) com muita pedra. O peso (do saco) tem que ser proporcional ao peso do adversário, para que ele não afunde, nem suba. Por isso, não acredito que, em sã consciência, alguém ainda pense em achar um corpo.”
A técnica: “É um estudo de anatomia. Todo mundo que mergulha na água, fica na água, quando morre tende a subir. Incha e enche de gás. Então, de qualquer maneira, você tem que abrir a barriga, quer queira, quer não. É o primeiro princípio. Depois, o resto, é mais fácil. Vai inteiro. Eu gosto de decapitar, mas é bandido aqui (Baixada).”
Rubens Paiva
Rubens Paiva
Rubens Paiva, calculo, morreu por erro. Os caras exageravam naquilo que faziam, sem necessidade. Ficavam satisfeitos e sorridentes ao tirar sangue e dar porrada. Isso aconteceu com Rubens Paiva. Deram tanta porrada nele que, quando foram ver, já estava morto.
Ai ficou o abacaxi, o que fazer? Se faz o que com o morto? Se enterra e se conta este negócio do sequestro. Só que o cara, primeiro, enterrou na estrada que vai para o Alto da Boa Vista. Aí, estavam fazendo a beirada da estrada, cimentando, e o cara viu que eles iam passar por cima do corpo. Foi lá e tirou.”
Destino final de Paiva: “Enterrar, queimar, botar no ácido, que desaparece. Tudo isso passou pela minha cabeça. Mas as dificuldades encontradas para fazer isso, já eram outras. Então, disse: ‘vamos resolver esse problema de modo que não deixe rastro’. Aí surgiu essa ideia. Discutimos a ideia e achamos que era a ideia mais viável.”
Prisões clandestinas
Prisões clandestinas
“Quando o cara entra no quartel, sabe que está seguro, que ninguém vai matá-lo. Quando você prende ele em uma casa, pensa: ‘Por que me trouxeram para cá e não me levaram para o quartel?’ E a gente ameaçava com isto: ‘Você já viu que você está preso, mas não está preso no quartel. Você está preso em uma casa. Daqui você pode ir para qualquer lugar. Aqui você não está inscrito em nada.”
Cadeia de comando: “Ele (o ministro) era sempre informado. Estava sabendo. Relatórios eram feitos e entregues ao chefe da seção com os EEI, Elementos Essenciais de Informações. Então, através desses EEI, eles sabiam tudo.”
Interrogatórios: “Aprendi que um homem que apanha na cara não fala mais nada. Você dá uma bofetada e ele se tranca. Você passa a ser o maior ofensor dele e o maior inimigo dele. A rigidez é o volume de voz, apertar ele psicologicamente, sobre o que ele é, quais são as consequências. Isto sim. Tudo isto é psicológico. Principalmente quando houve outros casos, né? Fulano foi preso e sumiu. Ele não é preso em uma unidade militar, ele vai para um lugar completamente estranho, civil, vamos dizer assim, uma casa. Ninguém sabe que ele está lá. Não há registro. Tudo isto é coação psicológica.”
Guerrilha
Guerrilha
Guerrilha: “Destruímos todas as organizações subversivas porque acabamos com a cabeça delas. Quando você corta a cabeça de uma cobra você acaba com a cobra. Então, este foi o nosso trabalho.”
Sono perdido: “Poxa, não. Só perdi noite de sono estudando (as organizações de esquerda). Até hoje, estudo.”
Aposentadoria: “Me retraí quando o meu mundo começou a virar. Quando fui sentindo que nós, que tínhamos lutado, e não fomos tantos assim, estávamos perdendo poder. Foi mais ou menos na época do governo Sarney.”
Carreira na repressão
Carreira na repressão
“O DOI (Destacamento de Informações de Operações) é o primeiro degrau. Você entra ali, voando. Aí, se brutaliza, passa a ser igual aos outros, mas depois vai raciocinando e se estruturando. Houve uma mudança da porrada para o choque. Você pode dizer: ‘Foi uma mudança ruim’. Foi não. Não deixava trauma, não deixava marca, não deixava nada. Já foi uma evolução.
Ai, você vai caminhando, aprende de outros lugares, também. De outros países, como é feita a coisa. Então, você se torna um outro personagem, um outro cara e, por causa disto, você é guindado a um órgão superior por ser um cara diferente e agir diferente. Tem muito mais amplitude, tem um universo muito maior, aí você se torna um expert em informações.”
O CISA
O CISA
“Levamos a ideia do CIE para o Burnier (brigadeiro João Paulo Burnier). Ele mostrou para o ministro (da Aeronáutica, Márcio de Souza Melo), que disse: ‘Poxa que troço! Então funciona’. Aí, fundou o Cisa (Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica). Tanto é que recebi a medalha de Mérito da Aeronáutica. Eu até me senti muito orgulhoso, foi o dia em que eu fiquei mais vaidoso.”
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