Carlos Lamarca: O Guerrilheiro Que Marcou a Vida de Bolsonaro

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Há exatos 50 anos, em 17 de setembro de 1971, Carlos Lamarca (1937-1971), um ex-capitão do Exército brasileiro que havia se engajado politicamente, foi morto com sete tiros por agentes da repressão da ditadura militar então em vigor. Curiosamente, sua trajetória marcou a adolescência de alguém que também se tornaria capitão do Exército e enveredaria pela política: o atual presidente Jair Bolsonaro.

Não é só o tempo de uma geração que separa ambos. Pode-se dizer que ambas as figuras estão em pontos diametralmente opostos do espectro político ideológico: se Lamarca, feito guerrilheiro contra a ditadura, tornou-se um ícone da esquerda revolucionária, Bolsonaro representa o conservadorismo da extrema-direita.

De forma reiterada ao longo de sua carreira política, Bolsonaro já repetiu que teria se impressionado com os relatos da caçada, pelos militares a serviço da repressão, ao guerrilheiro e seus companheiros. E que isso teria influenciado inclusive a sua vocação militar.

O cruzamento dessas biografias ocorreu pontualmente em 8 de maio de 1970. Foragido e extremamente procurado, Lamarca refugiou-se na pequena cidade de Eldorado Paulista, a 180 quilômetros de São Paulo. Uma operação militar foi deflagrada para capturá-lo. Houve tiroteio — o saldo foi um policial morto.

Lamarca fugiu. Mas a operação montada, com estradas interditadas, monitoramentos generalizados e revistas em toda parte, impressionou aquele estudante de 15 anos chamado Jair. Conforme ele mesmo já declarou: foi naquele dia que decidiu que iria se alistar no Exército. Ironicamente, tornaria-se capitão — mesma patente do seu antípoda guerrilheiro.

Herói ou vilão

Herói ou vilão


Apropriado pela esquerda como um herói e tachado pela direita de vilão, quem afinal foi Carlos Lamarca?

“Para entender essa dinâmica, é preciso antes distinguir memória de história”, argumenta a historiadora Juliana Marques do Nascimento, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Memória é uma imprecisão graças à sua relação com o presente e também com sentimentos, ideologias. Por isso, para as esquerdas, especialmente as alas mais progressistas, as memórias sobre Lamarca tendem a ser mais positivas, idealizadas. Enquanto para a direita, essas memórias são repulsivas, aliadas ao pensamento de direita da época”, pondera ela.

“Já a história, a historiografia, tem uma pretensão científica de olhar para o passado, por isso usa métodos bem formulados, para que seja uma ciência. Ela é mais objetiva, embora não esteja isenta de subjetividade”, acrescenta. “A história enxerga Lamarca como fruto de seu tempo: foi de fato uma pessoa com pensamentos inclinados mais para as ideias de esquerda, embora ele fosse originalmente das bases das Forças Armadas.”

Ela frisa que o personagem foi “completamente avesso ao golpe civil-militar de 1964”, demonstrava “profundo incômodo com o cenário político” e arquitetou uma “organização mais atuante, tanto na oposição ao novo regime, quanto na luta pela construção do socialismo no Brasil”.

A pesquisadora atenta que “a historiografia não é alheia e não nega as violações dos direitos humanos perpetrados pela ditadura”. Mas reconhece que o grupo de Lamarca não conseguiu chegar às camadas populares.

“A trajetória política dele e a liderança entre as esquerdas revolucionárias são fatos inegáveis. Mas é importante ressaltar que essa imagem de líder, de figura política proeminente, não chegou às massas populares, que eram seu alvo. A ditadura foi bem sucedida na blindagem da informação que não fosse de interesse do governo”, explica Nascimento.

“Lamarca foi um líder para as esquerdas revolucionárias que pouco ou nada atingiram as camadas populares. Foi um líder para um nicho muito específico no Brasil da ditadura. E se tornou vítima da ditadura: foi assassinado por suas ideias políticas”, afirma.

Ela frisa, contudo, que no discurso de Lamarca a volta da democracia não era uma questão aventada. “Seus escritos não nos deixam esquecer. Eles não pretendiam a mera volta de uma democracia liberal como a que estava instaurada antes da ditadura”, diz. “Mas, sim, o rompimento com a estrutura capitalista, por meio da implementação do socialismo pela via revolucionária. Não tem nada de pacifico.”

Para o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Brasília, é preciso considerar que a sedimentação do tempo acabou cristalizando uma imagem de diversos personagens do período da ditadura.

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Após a redemocratização, guerrilheiros passaram a ser vistos como “gente que lutava pela democracia” — o que não correspondia exatamente aos objetivos desses grupos. “Uma parte da esquerda nos últimos anos transformou a trajetória deles militantes. A maioria defendia a revolução enquanto projeto social e não necessariamente a democracia”, contextualiza Missiato.

“É muito questionável [classificarmo-los] como líderes de uma verdadeira democracia ou responsáveis pela recondução da democracia brasileira”, pondera. “Durante muito tempo, esses guerrilheiros eram vistos como sujeitos revolucionários, e não atores pela democracia”

“A apropriação de Lamarca e de outros passa por duas fases: na primeira, como um guerrilheiro a la Che Guevara. Atualmente, como um daqueles que lutaram contra a ditadura e defendiam uma verdadeira democracia”, complementa. “Isso vem sendo reconstruído pela historiografia mais vulgar, enquanto a mais acadêmica trata dele como uma figura mitológica.”

Tenente-coronel da reserva da Polícia Militar do Estado, o historiador Sérgio Marques defende que sejam lembradas “as vítimas que morreram nas mãos da esquerda” e “acabaram sendo jogadas para debaixo do tapete, como se não existissem”. “A respeito desse período turbulento do Brasil, houve atentados aos direitos humanos de ambos os lados”, acredita ele.

Marques também questiona a versão de que os guerrilheiros lutavam pela democracia. “Isso é uma falácia, uma mentira. Todos os documentos de todos os grupos revolucionários, ninguém falava em democracia, não existia nada a respeito dessa questão. Eles pretendiam substituir a ditadura existente no Brasil por uma ditadura do proletariado, ora modelo cubano, ora modelo soviético ou chinês”, afirma.

Biografia

Biografia

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“Lamarca é um homem do tempo dele, um tempo do ápice da Guerra Fria, a oposição entre os sistemas capitalista e socialista”, prossegue Marques. “Ele ganhou prioridade aqui no Brasil porque foi o homem de maior patente que pegou em armas. Mas não lutava pela democracia, e sim pela construção de um estado voltado para a ditadura do proletariado.”

O jornalista e ex-deputado federal Emiliano José, que na ditadura foi perseguido, preso e torturado, publicou, em parceria com o também jornalista Oldack de Miranda, a biografia ‘Lamarca: O Capitão da Guerrilha’.

Para ele, o guerrilheiro “ficará na história como um dos heróis da resistência”. “Isso é inegável, queiram ou não seus adversários, exatamente os saudosos da ditadura ou aqueles que eventualmente tenham participado dela”, diz. “Aqui não há dois lados: Lamarca foi um dos grandes combatentes da ditadura.”

Nascido em uma família simples do Rio de Janeiro, com pai sapateiro e mãe dona de casa, Carlos Lamarca foi um adolescente que defendia pautas nacionalistas — como a campanha “o petróleo é nosso” — e encantou-se com ‘Guerra e Paz’, do escritor russo Leon Tolstoi (1828-1910).

Aos 17 anos alistou-se na Escola Preparatória dos Cadetes. Depois, foi para a reputada Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende. Desde cedo destacava-se como bom atirador. Segundo registros, costumava vencer torneios militares de tiro.

Escalado para integrar um dos 20 contingentes do exército brasileiros do chamado Batalhão Suez — que atuaram na Força de Paz da Organização das Nações Unidas na região de Gaza —, Lamarca ficou 18 meses no Oriente Médio, a partir de 1962. Foi nessa época que passou a flertar com ideias socialistas.

Já de volta ao Brasil, Lamarca passou a atuar, dentro do Exército, na formação de grupos de esquerda, mesmo após o golpe que instaurou a ditadura em 1964. Foi um dos primeiros a integrar o grupo de extrema-esquerda Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). No fim de 1968, ele esteve com o também guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969), cofundador do grupo Ação Libertadora Nacional (ALN).

“Lamarca tinha o sonho de ser militar, desde menino. E foi um excelente militar. Só que viu que o Exército brasileiro, inegavelmente, serviu sempre a ‘casa grande’, aos interesses das classes dominantes do Brasil”, comenta Emiliano José.

“Ele carrega essa singularidade: de ter sido um excelente militar. Mas entendeu que nesse Exército ele não podia mais continuar. Aí jogou tudo pelos ares e foi à luta armada, para enfrentar a ditadura”, diz ainda José.

Em janeiro de 1969, Lamarca entrou para a clandestinidade. Desertou do Exército, acompanhado de um sargento, um cabo e um soldado. Numa Kombi, subtraíram ainda das Forças Armadas 63 fuzis, três metralhadoras e munições.

Sua vida então passou a se organizar em refúgios organizados por companheiros, normalmente apartamentos discretos em que ele se enclausurava — os chamados “aparelhos”. Apaixonou-se pela militante Iara Iavelberg (1944-1971), da VPR, e eles passaram a viver um relacionamento. Seus disfarces não se resumiam aos paradeiros desconhecidos. Lamarca se submeteu, em junho de 1969, a uma plástica no nariz.

No mesmo ano, seu grupo guerrilheiro experimentou uma fusão com o Comando de Libertação Nacional (Colina), resultando no Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), que teve entre seus quadros a depois presidente Dilma Rousseff.

Depois de um ano de preparação teórica, com muitas leituras e debates, o grupo de Lamarca se embrenhou pelas matas do Vale do Ribeira, no interior paulista. A ideia era utilizar o local como local de treinamento para a guerrilha armada.

Informado do que se passava, o Exército enviou 2,5 mil homens à região de Registro, em 21 de abril. A operação foi cinematográfica, com helicópteros esquadrinhando a mata, bloqueios de estradas, 120 detidos e até um avião da Força Aérea bombardeando pontos suspeitos.

Lamarca e seus companheiros conseguiram fugir, mata adentro. Dos 17 do grupo inicial, dois foram presos e oito se misturaram à população. O ex-capitão tinha apenas seis junto a ele. Foi esse grupo que acabou protagonizando o ocorrido em Eldorado Paulista em 8 de maio daquele ano — o noticiário destacava cada passo, sempre com uma narrativa favorável aos militares. Isso entusiasmava jovens como Bolsonaro.

“O atual presidente, ele carrega uma frustração profunda de não ter podido ser um dos torturadores da ditadura. Ele revela isso permanentemente, ao nomear seus ídolos”, diz Emiliano José. “Ele queria como menino ter combatido o Lamarca, mas é tudo fantasia dele [qualquer eventual participação na caçada]. Não se dá importância às fantasias e frustrações profundas dele não ter estado naquele tempo como um torturador, um carrasco. Não era possível, até pela idade, tudo.”

Depois de capturar policiais militares, Lamarca conduziu um acordo — libertando-os em troca da reabertura da estrada. Nessa fuga, os guerrilheiros mataram um tenente policial militar, que era feito como refém.

O cerco de 41 dias acabaria de uma maneira inesperada. Em 31 de maio, armados, Lamarca e os companheiros remanescentes decidiram tomar um veículo que passasse na estrada para fugirem. Renderam cinco soldados que trafegavam em um caminhão do Exército, deixaram-nos só de cuecas e, usando seus uniformes, passaram incólumes pelas barreiras. Na mesma noite, o veículo foi abandonado na Marginal do Tietê, em São Paulo.

O episódio transformou Lamarca no homem mais procurado do país. Para Emiliano José, toda essa “manobra espetacular” pode ter sido o que desencadeou sua fama de uma espécie de Che Guevara brasileiro. Mas o biógrafo ressalta que essa comparação não é precisa. “Chamá-lo de Che é parte dos clichês da imprensa mundial, porque Che se transformou em uma figura pop, um pop star. Mas não cabia isso [esse tipo de comparação]”, diz.

Sua próxima aventura seria o sequestro do embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Bucher (1913-1992), em 7 de dezembro de 1970. Na ação, um agente federal que atuava na segurança da embaixada foi morto a tiros por Lamarca.

No início do ano seguinte, o guerrilheiro saiu da VPR e passou a integrar o MPR-8. Depois de meses confinado com ela em um “aparelho” no Largo do Machado, no Rio, Lamarca partiu para o que seria o começo de sua vislumbrada guerrilha rural, no interior da Bahia.

Baseado na região de Buriti Cristalino, a 590 quilômetros de Salvador, ele escreveu muitas cartas para Iavelberg — e foi por meio dessas cartas, interceptada pela polícia, que seu paradeiro acabaria descoberto.

A operação foi montada pelo Doi-Codi baiano, que recrutaria 215 homens das três forças armadas, além de agentes federais, policiais do Dops e da Polícia Militar da Bahia.

Depois de 20 dias de uma caçada em que Lamarca se deslocou por mais de 300 quilômetros pela mata, às 15h do dia 17 de setembro, o guerrilheiro foi encontrado descansando sob uma árvore em Pintada, um povoado no município de Ipupiara. Foi morto com sete tiros.

“A forma como ocorreu o assassinato é bem emblemática”, comenta a historiadora Nascimento. “Ele estava desolado, desnutrido, cansado. Foi localizado sem possibilidade de revide.”

Mito

Mito

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Mas é a própria polarização politico-ideológica da sociedade brasileira que deixa uma figura como Lamarca em proeminência. Se sua trajetória póstuma foi reconstruída pela redemocratização, sob os escombros dos porões da ditadura, o fato de ele ser recuperado como símbolo antagônico pelo atual presidente Bolsonaro garante a sobrevivência do mito.

“O mito político não se baseia na razão, mas numa lógica afetiva. Não há neutralidade: ou você está a favor ou contra ele”, diz o historiador Zenir Rodrigues dos Anjos Filho, que em 2003 defendeu, na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), a dissertação de mestrado ‘Carlos Lamarca: Significação, Mítica e História’.

“O mesmo argumento que coloca o mito como herói, coloca-o como bandido. O Lamarca é herói e é bandido. Ele sintetiza uma tragédia: se você procurar seus partidários, irão interpretá-lo como herói; adversários vão chamá-lo de demônio”, explica.

Nesse sentido, os sete tiros não serviram para matar Carlos Lamarca. Porque mitos resistem à morte. “Todos os mitos ressuscitam”, diz Anjos Filho. “Todos vencem a tragédia, e no caso de Lamarca isso ocorreu com o fim do regime militar.”

E se a releitura dele estava já meio esquecida no imaginário, o fato de seu nome ter sido trazido à tona nos últimos anos pela biografia do atual presidente contribui para incensá-lo novamente. Porque, segundo Anjos Filho, “um mito só morre quando deixa de fazer sentido”. “Ele se alimenta do oposto, do negativo. Se você tentar destruir um mito, você vai construí-lo cada vez mais”, diz.

20200331230320_60ebf6fb374b0f324591c2e2defd6e32e61d97e0a9f5addc855af047958eea68 Carlos Lamarca: O Guerrilheiro Que Marcou a Vida de Bolsonaro

Para o historiador Victor Missiato, o mito Carlos Lacerda é calcado pelo fato peculiar de ele ter sido um “militar desertor” que teve “vitórias importantes enquanto guerrilheiro em ações contra bancos e também contra o Exército”. “Ao longo do tempo, essas histórias foram construídas como a de alguém que desafiava a ordem autoritária, lutando por um ideal”, pontua.

Mas ele mesmo ressalta que a historiografia “é um eterno campo de conflitos”. “Com a ascensão de campos de direita ao poder, houve embates a uma certa leitura cristalizada que predominou entre os anos 1990 a início de 2000. Nesse sentido, podemos encaixar Lamarca como vilão e como herói”, comenta. “Isso vai enriquecendo a figura do personagem, porque se de um lado ele é visto de uma forma e de outro, de forma diferente, as novas pesquisas vão enriquecendo sua biografia. Quem quiser fazer uma análise mais ampla consegue ter mais informações.”

“Nos últimos anos, sobretudo nos governos Dilma Rousseff e, agora, Jair Bolsonaro, houve tentativas, a partir de vitórias eleitorais, de reinterpretar a história daquele momento”, diz o historiador, lembrando do passado de Rousseff como guerrilheira e a carreira militar do atual presidente do Brasil. “Com Bolsonaro, é mais forte ainda, quando ele ressalta um papel de capitão do Exército que não corresponde à sua trajetória dentro do Exército.”

O historiador se refere ao fato de que a carreira militar de Bolsonaro foi curta e marcada por polêmicas. Documentos do próprio Exército, produzidos nos anos 1980, ressaltam que ele era avaliado por superiores como alguém com “excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente”, além de ser visto como dono de temperamento agressivo. Em 1986, ele chegou a ser preso por 15 dias. Em 1988, foi para a reserva — a partir de então, empreenderia uma carreira política.

Frisando que foram três vítimas fatais das atividades de Carlos Lamarca, o historiador e militar Sérgio Marques afirma que ser chamado de “Che Guevara brasileiro” não deve ser motivo de orgulho. “Porque Che Guevara era um homem que matava pessoas, infringia direitos humanos, não respeitava valores humanitários”, acusa.

“Mas a figura de Lamarca acabou sendo tomada pela esquerda como uma grande referência. Evidentemente, ele tinha um ideal. Se era certo ou errado, isso é outra coisa. Mas ele era um idealista, acreditava naquilo que fazia”, considera. “No meu modo de ver, não é correto pegar em armas e matar outras pessoas.”

Emiliano José, seu biógrafo de primeira hora, ressalta que Lamarca é “parte da história brasileira e, inegavelmente, um grande símbolo de todos os que tombaram ao longo da caminhada na luta contra a ditadura”, dentre os “covardemente assassinados” pelas forças repressoras.

“Podemos e devemos analisar os equívocos de sua trajetória, mas isso, esses caminhos trilhados durante a luta, só são possíveis de serem reconhecidos muito à frente, com os anos já passados”, pondera José. “Fato é que ele se revoltou contra a ditadura, as mortes, as torturas e os desaparecimentos de pessoas, quadro patrocinado sobretudo pelo Exército brasileiro, pelas Forças Armadas.”

“Seu lado, o do combatente, do sujeito indignado frente aos crimes da ditadura, esse lado ninguém poderá apagar jamais. Compõe a história do Brasil”, afirma. “É inegável que as classes dominantes tentem tratar [personagens assim] como bandidos. Mas não há como. A ditadura foi um regime de terror e morte. E eu sei o que é isso, como sobrevivente, porque passei quatro anos em uma prisão e fui torturado.”

Emiliano José ressalta que 50 anos, para a história, é muito pouco. Portanto, a biografia de alguém como Carlos Lamarca permanece “em construção” — não à toa, seu livro, cuja primeira edição data de 1980, já teve outras 17 edições, todas com muitas alterações e ampliação de conteúdo.

Para a historiadora Nascimento, é preciso relativizar: “as memórias das esquerdas sobre a ditadura civil-militar tendem a ser mais simpáticas aos opositores, apesar disso a gente tem de ressaltar que as organizações revolucionárias de luta armada têm constantemente os seus objetivos e suas estratégias desvirtuadas pelos discursos memoriais”.

“Lamarca parece ser muito importante para as esquerdas atuais, mas seus pensamentos e convicções são apagados do processo”, acrescenta ela.

“Para os mais progressistas, ficou a imagem do capitão que queria romper com sua vida legal, sua família, sua carreira, em nome de uma luta contra a ditadura. Há um apagamento do lado mais radical de Lamarca, isso porque ainda que dentro das esquerdas, o radicalismo, a tentativa de revolução, quando colocada em prática de fato, e a implementação do socialismo pela via revolucionária, são consideradas táticas violentas demais”, afirma.

Nascimento diz que “para as esquerdas atuais”, a biografia de Lamarca assume aspectos “mais brandos”. “Um ‘Che Guevara’ menos revolucionário, com o único e digno objetivo de pôr fim ao regime autoritário, libertar a população brasileira reinstaurando a democracia como ela era conhecida antes”, explica. “Não era o que de fato Lamarca pretendia.”

“Por muitos anos a narrativa de memória hegemônica sobre a ditadura foi advinda principalmente das esquerdas liberais, que valorizavam todas as tentativas de resistência”, acrescenta. “Porém, nos últimos anos, sobretudo depois de 2013, vozes que antes estavam subterrâneas ou não encontravam lugar e legitimidade nos debates públicos ressurgiram com mais força, com um discurso de valorização da ditadura. Negando que tenham havido assassinatos, desaparecimentos e o uso da tortura como política de Estado.”

Ela explica que foram esses mesmos discursos, à direita, que passaram a ressaltar “as eventuais mortes de soldados e civis que ocorreram durante as ações revolucionárias”. É um cenário que ela classifica como “batalha por memórias”.

Iara Iavelberg

Iara Iavelberg

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A historiadora Nascimento está pesquisando, na Universidade Federal Fluminense, a biografia de Iara Iavelberg. “Se você tem a impressão de que pouco se fala sobre os outros militantes que atuavam com Lamarca, imagine o que sobra então para as militantes mulheres”, comenta. “Principalmente o caso da Iara: que ficou única e exclusivamente conhecida como companheira de um líder, e ainda é lembrada dessa forma.”

“É uma personagem fascinante”, concorda o jornalista Emiliano José. Nascida em uma família de comerciantes judeus de São Paulo, em 1944, ela casou-se aos 16 anos com um médico de 25. Em 1963, ingressou no curso de psicologia da Universidade de São Paulo.

“Ficava na Rua Maria Antônia [em São Paulo], o maior epicentro social e político universitário da época”, pontua Nascimento. “Lá ela entrou em contato com um mundo novo, ampliou referências sociais e políticas e encontrou formas de se libertar de seu casamento tão restrito, com casos extraconjugais e engajando-se nas organizações de esquerda.” Desquitou-se em 1965.

Iavelberg passou a integrar grupos de estudo e células esquerdistas. A partir de 1965, lecionou em cursinho pré-vestibular organizado e conduzido por militantes da USP. “Há relatos de que ela fomentava muitos debates políticos e comportamentais entre os alunos, falando de pílula anticoncepcional e da Guerra do Vietnã”, diz Nascimento.

Tornou-se líder estudantil e, depois de formada, passou a lecionar psicologia nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) e na Universidade Metodista, além da própria USP, como instrutora voluntária. Em 1968, foi para a clandestinidade.

“Esteve muito próxima de militantes como Dilma Rousseff”, diz Nascimento. Na historiografia, é forte a tese de que ela teria sido responsável por subsidiar a formação intelectual de cunho marxista de Carlos Lamarca, durante o período em que tiveram um relacionamento amoroso. Apesar de ser fato que ela realmente encarregou-se da formação teórica de quadros guerrilheiros, Nascimento diz que é preciso lembrar que “o próprio Lamarca era muito dedicado e corria muito atrás para aprofundar suas informações, que ele mesmo considerava muito básicas”.

“Ela não dava aula para ele. Mas eles discutiam muito [os temas] entre si”, pontua.

Sua morte, em 20 de agosto de 1971, praticamente um mês antes da de Lamarca, em Salvador, é bastante controversa. Oficialmente, de acordo com a certidão de óbito, teria sido suicídio com um tiro — para evitar ser presa pelos agentes da repressão em uma operação. Por conta disso, ela foi sepultada em ala reservada asuicidas no Cemitério Israelita de São Paulo.

Em 2003, depois de uma batalha judicial, a família conseguiu a exumação do corpo, com perícia para investigar a sua causa-mortis. Um especialista em medicina legal concluiu que o tiro que a matou foi disparado de longa distância. Seus restos mortais foram, então, removidos do espaço reservado aos suicidas e sepultados novamente na proximidade dos túmulos de seus familiares.

Para a historiadora Nascimento, estudar a trajetória de Iavelberg é retirar uma mulher da invisibilidade. “Embora ela tenha tido uma militância, principalmente teórica, anterior ao Lamarca, e tendo se mantido na militância por escolha dela, mesmo durante o relacionamento amoroso com ele, todas as notícias que saíam a seu respeito a retratavam como uma pessoa que usava seu sex appeal para influenciar as decisões políticas do Lamarca”, enfatiza. “As informações estava sempre atreladas à figura dela, como sexy, sensual, bonita, e foi criada uma imagem fútil dela para deslegitimar ainda mais a imagem dele. E toda a história [de Iavelberg] foi apagada.”

 

Livros de Gil DePaula

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