PAIS E FILHOS
As paredes pintadas de cores diferentes, as duas dezenas de bonecas lembrando estátuas de louça. O edredom, os lençóis e as fronhas brancas bordadas em dourado com as letras JD, contrastavam com a imagem que melhor descreve a cena, quando olhada do alto da janela daquele quarto, no quinto andar, para baixo.
No asfalto, jazia o corpo de Joana D’Arc. Porém, dentro do cofre cinza no quarto, o diário que poderia calar as especulações sobre o ocorrido.
Vamos a ele e para entendermos melhor a cena, desprezaremos algumas páginas, entre elas, as que tratam dos amores infantis, dos poemas que julgamos lindos e, depois, temos vergonha de mostrá-los, esquecendo que são frutos da inocência perdida:
Do diário de Joana D’arc
“Querida Joana Mais Velha – Hoje faço treze anos. Toda vez que faço aniversário minha mãe me manda pro meu pai. Ela prefere ficar com o namorado e eu odeio ele. A mulher do meu pai me olha demais, reclamou da pizza. É uma chata. Não sei como meu pai aguenta. Queria ter ido só com ele”.
“Querida Joana Mais Velha – As aulas acabaram e estou de férias até dia 21. Agora não perco uma sessão da tarde. Assisti a um filme antigo onde um menino tá doente e fica preso numa bolha, não sei por que, mas me fez lembrar do Mário. Solange disse que devo mim insinuar mais, mas já fiz de tudo e ele nem olha pra mim”.
“Querida Joana Mais Velha – Tive um pesadelo horrível na noite passada”. Sonhei que estava presa na bolha de plástico e ela diminuía e me apertava, apertava, apertava até eu ficar sem ar. Acordei gritando e minha mãe me deixou dormir com ela. Minha mãe ligou pro meu pai e hoje ele veio me visitar, mas nem conversou direito comigo e pegou uma briga com minha mãe. Os dois brigam mais que Tom e Jerry. Chorei muito, eles não ligam pra mim. Só se importam com eles. Um dia fujo de casa e não volto nunca mais. Eles vão se arrepender!
“Querida Joana Mais Velha – Solange me chamou pra ir numa festa, mas eu não quis. Fui pro shopping e fiquei andando. Andei muito, depois bateu uma tristeza e fui pro banheiro chorar”. Eu não sou ninguém Joana Mais Velha, tomara que você tenha mais sorte.
“Querida Joana Mais Velha – Eu decidi que amo as pessoas. Não importa quem elas são. Não importa que não liguem pra mim. É mentira Joana Mais Velha, eu odeio as pessoas… às vezes”.
“Querida Joana Mais Velha – Eu gostava muito quando eu morava na casa da vó Lena. Hoje estou com saudades dela. Às vezes sinto (não sei como) o cheiro que vinha do forno quando ela tirava o bolo assado, até água na boca me dá. Hoje é sete de setembro e minha mãe viajou com o namorado. Detesto esses desfiles”.
“Querida Joana Mais Velha – É natal e não choveu. O céu está azul, se estivesse chovendo estava cinza. A professora falou que o céu é azul por causa de um monte de coisas complicadas: prisma, comprimento de ondas, átomo, na época não entendi muito bem e fiquei com vergonha de perguntar. A Ceia foi na casa da prima da minha mãe (você se lembra dela? É a Maria. É aquela que fala sem parar). Antes botaram umas músicas. O Carlinhos dança tão bem! ”
“Querida Joana Mais Velha – Ontem levantei do quarto pra beber água, e quando passei pela porta da sala minha mãe estava chorando sentada no sofá. Eu quis saber o que ela tinha, ela disse que não era nada. Eu sentei do lado dela e ela me abraçou. Depois encostou a cabeça no meu colo (foi a única vez que ela fez isso) e disse, ainda com um pouquinho de lágrimas: terminei com Décio. Pela primeira vez me senti mais adulta que ela. ”
“Querida Joana Mais Velha – Matei aula hoje e fomos pra casa do namorado da Solange. Eu gostei muito da caipirinha que ele fez e bebi três copos. Ele me ofereceu um cigarro que chama baseado, mas eu não peguei. O negócio tem um cheiro estranho. Depois que ele e a Solange fumaram, ficaram com uma cara de bobo, e eu comecei a passar mal. Só melhorei depois que vomitei. ”
“Querida Joana Mais Velha – Um dia quero ter um filho. Quero um menino. O pai sempre gosta mais de meninos. Meu pai tem um menino com a mulher dele, e leva ele pra cortar o cabelo, toma banho com ele, brinca de lutinha e até joga bola com ele. Eu vou amar muito o meu filho. Eu vou ser amiga dele. Não vou deixar ninguém maltratar ele. Meu filho vai chamar Francisco, que nem o santo. Eu amo São Francisco de Assis porque ele falava com os bichos. Acho os bichos melhor que gente. ”
“Querida Joana Mais Velha – Minha mãe tá brava porque pintei o cabelo de vermelho, mas a Solange gostou muito. A Solange pintou o dela de azul. Ela brigou com outra garota porque chamou ela de arara. Eu também briguei porque outra garota ia pegar a Solange na covardia. Quando chegou na escola minha mãe ficou mais brava ainda por causa da diretora, que encheu a cabeça dela. ”
“Querida Joana Mais Velha – Têm muitos dias que tou triste. Fumar um baseado tá me deixando pior e não vou mais fumar. Eu não sei o que esperar do futuro, talvez ele não exista. O mundo mim odeia! Solange mudou para Goiânia, mas disse que vem mim visitar. Estou mim sentindo muito só. Minhas notas estão péssimas não consigo estudar. Acho que sou a única virgem da escola. As malditas espinhas tomaram conta do meu rosto. Um garoto me chamou de peneira. Eu odeio espinhas! Eu li num livro que é normal se masturbar, mas eu tenho vergonha. Não consigo mais brincar com minhas bonecas”.
“Querida Joana Mais Velha – Esta noite fez frio e o vento fazia barulho. Mas não foi por causa deles que tomei a decisão. Querida! Decidi que você não vai existir. Hoje vou me matar! ”
O vento soprando, de certa forma, embalava o corpo que depois de coberto parecia apenas dormir.
Letra da música “Pais e Filhos”
Ninguém sabe o que aconteceu
Ela se jogou da janela do quinto andar
Nada é fácil de entender
Dorme agora
É só o vento lá fora
Quero colo
Vou fugir de casa
Posso dormir aqui
Com vocês?
Estou com medo tive um pesadelo
Só vou voltar depois das três
Meu filho vai ter
Nome de santo
Quero o nome mais bonito
É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar
Na verdade não há
Me diz por que é que o céu é azul
Me explica a grande fúria do mundo
São meus filhos que tomam conta de mim
Eu moro com a minha mãe
Mas meu pai vem me visitar
Eu moro na rua, não tenho ninguém
Eu moro em qualquer lugar
Já morei em tanta casa que nem me lembro mais
Eu moro com meus pais
É preciso amar as pessoas
Como se não houvesse amanhã
Porque se você parar pra pensar
Na verdade não há
Sou uma gota d’água
Sou um grão de areia
Você me diz que seus pais não entendem
Mas você não entende seus pais
Você culpa seus pais por tudo
Isso é absurdo
São crianças como você
O que você vai ser
Quando você crescer
Livros de Gil DePaula -- www.clubedeautores.com.br
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Gil,
Queria ter conhecido a Joana jovem e tê-la ajudado, se ela fosse minha filha e eu conseguisse abrir o cofre e ler…morreria também!
Parabéns!
Wan Morais
Obrigado, Wanderley pelo comentário sobre o conto Pais e Filhos.