Amir & Akin

Por Gil DePaula

Amir-e-Akin Amir & Akin

Akin

Ao chegar em casa a mãe o abraçou. Um abraço longo, apertado e molhado pelas lágrimas que escorreram dos olhos de ambos. Já era noite. Uma sexta-feira, 10 de maio de 2019. Domingo, dia 12, Dia das Mães, passariam juntos, o que não acontecia há dois anos. Tempo que esteve confinado na Unidade de Internação para menores de Santa Maria. Teve bom comportamento e recebeu o prêmio, que para ele foi o melhor da vida, passar aquele final de semana com a família.

Amava aos quatro irmãos, mas possuía verdadeira adoração por Elza. Mulher negra, empregada doméstica, diarista, catadora de latinha, lavadeira, cozinheira, faxineira, pai, mãe, às vezes servente de pedreiro e sempre honesta.

Akin levantou-se cedo no sábado decidido a arranjar um bico qualquer. Depois de dois anos, quase três, não podia deixar passar em branco o Dia das Mães. Provavelmente, aquele vestido florido, que vira a mãe a cobiçar, tantas vezes na Loja da Ene, não estava mais à venda. E pouco importava, pois já deveria estar fora de moda. Compraria outro ou quem sabe uma bijuteria, bonita, brilhante, que a mãe mostraria para as amigas, dizendo orgulhosa que foi seu filho que lhe dera.

Pensou no seu Almeida, dono do lava a jato. Se a procura pelos serviços estivesse alta, talvez ele o contratasse para ajudar nas lavagens dos carros. Lembrava-se, que desde os seis anos, quando ele começou o negócio, simplesmente para ajudá-lo, o homem permitia que Akin lavasse os tapetes e pneus dos veículos. As gorjetas de pouquíssimos reais, invariavelmente, levava para a mãe, que transformavam-se em pães comprados em uma padaria próxima ao barraco em que moravam.

Seu Almeida sentiu a decepção estampada no rosto de Akin, quando lhe negou o pedido de trabalho, mas nada podia fazer. A fama de ladrão do rapaz havia se espalhado por toda a Santa Maria. Contratá-lo, poderia espantar os clientes. Além do mais, sua equipe de lavadores estava completa.

No mercadinho também lhe disseram que não precisavam de empacotadores. Ninguém tinha grama para cortar ou necessitava de um “oreia” para servir de servente nas obras.

De coração pesaroso, decepcionado, começou a duvidar que conseguiria comprar o presente para Elza. Passava das 16h e ele, desistindo de encontrar alguma coisa para fazer, resolveu voltar para casa quando ouviu seu nome ser chamado.

Biriba foi o seu companheiro nos furtos que cometera nas casas do Gama. Cumprimentaram-se, tocando com os antebraços e depois as costas das mãos, um no outro. Akin lhe contou que no dia anterior havia saído do centro de internação, das suas desventuras naquele dia, e da frustração por não ter dinheiro para comprar o presente do Dia das Mães para Elza.

– Não esquenta, Mano! – disse Biriba. – Vai rolar hoje, na Tenda da UnB, um rock doideira. Os filhinhos de papai vai tá tudo lá. Já juntei um pessoal aí. Tamo junto eu, Figura e mais quatro chegados. À noite vamos lá. Vamos meter as máquinas neles e fazer uma arrecadação. Vai ser um verdadeiro arrastão. Num vai ter polícia! Os playboy não quer. Se quiser mano, tu tá dentro e garante o presente da mamãe.

Amir

Ele sempre se considerou uma pessoa de sorte. Nascido em uma família pobre foi adotado com apenas duas semanas de vida. Apesar de nunca ter conhecido seus pais biológicos, sabia que fora agraciado por Deus ao ser adotado, conforme sua mãe adotiva lhe fez ver. Da mãe biológica, a única coisa que possuía conhecimento, é que ela havia lhe dado o nome Amir, por causa de um príncipe Suaíli.

No começo, principalmente, na escola, os colegas estranharam seus pais brancos. Ele, para encerrar conversas, dizia que seu avô por parte de pai era negro e sua mãe branca, o que seus cabelos lisos e longos podiam confirmar, apesar da pele dele ser escura. Estranhamente e de forma improvável, nunca se sentiu objeto de discriminação de quem quer que fosse. Possuidor de um carisma que a todos encantava, sempre estava bem vestido com roupas de grife e calçados de marca, que certamente custavam o salário mensal de muitos trabalhadores, e lhe emprestavam um “ar de riquinho”.

A esmagadora maioria branca dos seus colegas de sala, pelos colégios pagos em que estudou, o respeitavam e o admiravam, pois sempre era um dos primeiros da turma.

Aos doze anos, falava fluentemente o inglês e já se virava no francês e espanhol. Aos quinze anos montou sua banda de rock, influenciado pelo Led Zeppelin, Queen e Legião Urbana. Em 2019, ano em que completaria 17 anos, passou no vestibular e ingressou na UnB. Cursaria direito, mas tinha dúvida se realmente era o que queria fazer da vida.

A desembargadora Natália sempre incentivou e cobrou de Amir o desenvolvimento literário e o gosto pelas artes, que acabaram por se tornar a grande paixão da vida dele. Quando adotou o menino, alguns amigos lhe repreenderam afirmando que uma mulher branca e na posição dela não deveria adotar uma criança negra. Em resposta, a pessoa recebia a seguinte pergunta: “Você é Cristão?”. Alguns se calavam percebendo o alcance da arguição. Outros afirmavam que sim, fazendo com que a Juíza continuasse: “Tem certeza?”.

A alegria de Amir naquele sábado contagiou aos pais, que de idade avançada, viviam praticamente para o filho. A felicidade dele era bálsamo para suas almas. Ficavam a lhe observar na frente do espelho da sala, vestido dos pés à cabeça de preto, o ensaio particular e performático, realizado para sua apresentação, que ocorreria à noite na UnB. Realmente – conjecturavam entre si – o filho possuía talento referendado por uma voz maravilhosa e bem colocada. Se quisesse, se tornaria um astro do rock, babavam os “velhos corujas”.

A Festa

Duas bandas já haviam se apresentado e agora o espaço do palco da Tenda da UnB era dos Malucos do Cerrado, comandados pelo vocalista e guitarrista Amir. A banda era considerada a grande promessa, na busca de reviver o majestoso passado do rock brasiliense.

A primeira música apresentada e composta pelo astro do grupo, foi uma balada pesada, meio psicodélica, chamando a atenção para a corrupção e os desmandos dos políticos, levando a galera à loucura, que dançavam e cantavam juntos com a banda.

A segunda era uma ode ao amor. Falava das estrelas e dos amores perdidos sob elas. Falava de reconquista e esperança. Falava da vida a dois.

A terceira era rápida, dançante, enojava-se com a miséria, com a discriminação, com o descaso. Amir desfilava a canção com os olhos fechados, viajando em suas próprias letras e na melodia eletrizante, criada por sua banda.

Os membros dos Malucos do Serrado, somente perceberam a confusão quando esta fronteirou-se do palco. A Tenda parecia estar sob um terremoto. Os jovens corriam e, principalmente, as garotas gritavam assustadas, à beira da histeria. Outras, choravam paralisadas pelo medo. Alguns estavam de braços abertos e levantados para o céu. No meio da bagunça ouviram tiros, e muitos se jogaram ao chão. Sorte que eles foram dados para o alto, com o intuito de controlar a multidão.

Akin aproxima-se do palco, aponta sua arma para a banda e dirigindo-se a Amir, empurra-o e pega o microfone. Em seguida ordena:

– Todo mundo pro chão senão leva bala!

Os que tentaram fugir deram com a cara nas portas fechadas e controladas pela quadrilha, composta por oito membros. Sem cerimônias, os bandidos passaram a recolher os pertences de valor das suas vítimas.

Amir julga que é seu dever intervir e tentar serenar os ânimos. Vira-se para Akin e pede que tenha calma. Biriba que também já subira ao palco diz:

– Cala boca, bicha imunda!

Entretanto, Amir quer retrucar e ensaia a argumentação. Biriba percebe e não gosta. Biriba aponta a arma para Amir que se paralisa. Biriba observa o rapaz e não vê medo em sua face. Então, ele se irrita com aquilo. Biriba puxa o gatilho. A bala se aloja no peito de Amir, que é jogado para fora do palco pelo impacto do projétil.

Akin grita:

– Você ficou maluco? Não precisava pipocar o rapaz! – diz atordoado.

Biriba aponta a arma dele para Akin, que abaixa a sua. Biriba, calmamente, desvia a arma da direção de Akin e ordena a retirada. Ele e a quadrilha correm para fora. Akin retorna a si e também foge.

Elza

Há quase dezessete anos Elza cometeu o ato que mais lhe machucava na vida. E no Dia das Mães, as dores se tornavam mais fortes e doíam uma dor dolorida – era assim que ela conseguia descrever – sufocante, de uma angustia que lhe fechava o peito e até a impedia de respirar.

Quando lhe diziam que ela era uma grande mulher, mãe como poucas, e a admiravam por ser tão religiosa, apesar da situação difícil que sempre viveu, não sabiam eles, que ela e Deus não tinham a mesma opinião. Pior; conheciam a verdade.

Elza há quase dezessete anos, trocou o filho mais velho por um salário mínimo. Melhor: vendeu o filho mais velho por um salário que não durou um mês. A empreitada fora ajustada por sua patroa na época. América, lhe propôs sem cerimonias o acerto. O dinheiro enviado pela juíza infecunda estava com ela, contado e recontado. À noite, foi até o barraco da empregada. Sorrateiramente, colocaram a caixa de papelão com a criança dentro do carro. Apenas uma coisa exigiu: o menino deveria continuar com o mesmo nome, Amir. Queria que seu filho tivesse algo dado por ela. Além de que, o irmão de Amir chamava-se Akin. Acreditava que os nomes combinavam em gêmeos.

Elza levantou cedo da cama. O dia, ensolarado, era condizente com aquela data, parecendo que a natureza era partícipe daquela comemoração. Talvez, o sol fosse filho de alguém. Por que não? Tudo não foi criado por Deus?

Os quatro filhos vieram cumprimentá-la e abraçá-la pelo Dia das Mães. Estranhou a ausência de Akin. Antes, percebeu que o rapaz não estava na cama dele. Todavia, seu coração logo sossegou. O rapaz, naquele momento, entrava em casa carregando alguns pacotes. Mostrou a galinha que comprara. Estava depenada, faltando apenas ser cortada e cozida, para ser servida no almoço. Todos ficaram felizes.

Quando Akin tirou do bolso o pequeno pacote em papel de presente, a mãe e os irmãos entreolharam-se surpresos. Prontamente, o bonito cordão de prata com a imagem da Virgem Maria passou a enfeitar o pescoço e o colo de Elza, que de tanta felicidade por ter o filho de volta, pelo mimo, e podemos dizer pela galinha, que brevemente seria comida, esqueceu de perguntar onde o filho mais velho conseguira o dinheiro…

Natália

Espaço e tempo se curvaram sob os seus pés, e o universo a reduziu a nada. Era mentira; flores não possuíam perfume. Não existia céu, apenas a profundeza da imensidão, imensurável, esmagadora, atordoante. Os dias nunca tiveram cor, sempre foram noites tenebrosas. O amor? Uma mentira que sempre caía por terra. Ah! E os homens? Cães vis. Vira-latas em busca de qualquer osso atirado. Animais à beira da bestialidade esperando um sinal que lhes permitisse desfilar suas torpezas. Ali tudo era branco. Esmagadoramente branco. Aventais brancos, sapatos brancos, dentes brancos, macas brancas, lençóis brancos. A morte era branca!

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2 Comentários

  1. Gil,
    De início pensei que veria mais uma narrativa branco x negro, rico x pobre, coisa que detesto por motivar separação, mas no decorrer percebi que sua narrativa não vai seguir neste tema batido e ultrapassado, me interessei e fiquei preso na leitura!
    Muito bom!
    Wan Morais

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