O Estranho Computador do Senhor Bartolomeu

(uma história “Além da Imaginação”)

Gil DePaula

Notebook-Twilight-1024x585 O Estranho Computador do Senhor Bartolomeu

Olhe bem de perto e verá que o Sr. Bartolomeu é uma figura única. Magro, as pernas dentro de uma calça jeans folgada, que ele invariavelmente, usava por uma semana. A camisa quadriculada pertencia a uma coleção de camisas do mesmo naipe, fazendo parecer que ele sempre usava a mesma. Sobre a camisa repousava uma gravata estampada e de gosto duvidoso. Possuía ele ainda a cabeça grande e desproporcional ao corpo, cujo os olhos míopes recebiam os óculos enormes, de lentes grossas, apoiados sobre o nariz.

Se você nunca viu alguém assim e, tomado pela curiosidade, desejar conhecê-lo, vá ao Bloco C da Quadra 2, no Setor Comercial Sul de Brasília. Entre no elevador e dirija-se ao quinto andar. Lá encontrará, na recepção da empresa Digital Tecnologias Avançadas, a Sra. Wanda. Solicite a ela que o leve à sala do programador Bartolomeu. Porém, não perca tempo, pois, ainda que o Sr. Bartolomeu não espere e não saiba, ele está prestes a mudar a sua vida de 53 anos de mediocridade.

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Ao ouvir a música programada no seu aparelho celular para despertá-lo às 6h da manhã, o Sr. Bartolomeu tinha a certeza de que aquele dia seria apenas mais um igual aos demais de sua vida. Afastou o cobertor que o cobria e tateou em busca dos óculos. Somente depois interrompeu o som que ecoava do aparelho. Aproveitou e verificou as mensagens que estavam no seu zap e fez o mesmo com o Facebook. Às 7h, já havia se banhado e tomado o café na padaria localizada no térreo do edifício em que ele morava. Em seguida, montou na sua moto 125 CG 2013, que o esperava estacionada na frente do comércio, e foi trabalhar.

Vinte e nove anos sentado à mesma mesa, em frente a um computador. Vinte e nove anos programando para a mesma empresa. Começou com as linguagens de programação Fortran e Cobol. Passou pelo MUMPS, Java e, agora, programava em PHP. Para Bartolomeu, uma linguagem tão simples que apenas aumentava seu tédio. Detestava a recepcionista, o chefe, o analista de sistemas que sistematicamente tirava um sarro dele, a mulher que servia o café e sempre o deixava por último, e os jovens programadores, que se enrolavam com o desenvolvimento de um simples site.

E assim, odiando a todos, o Sr. Bartolomeu descarregava suas frustrações no computador. Digitava raivosamente, batendo nas teclas do equipamento como se estivesse partindo a cara de alguém. Era difícil passar um mês em que não precisasse trocar o teclado. Os nomes dos seus desafetos estavam em uma pasta nomeada por ele de “Os Imbecis”. Lá estavam os nomes do chefe José Manoel (um português metido a besta), da recepcionista Wanda, do analista Figueiredo e de vários outros. Dessa forma, sentia-se, de certa forma, vingado.

Quando seu chefe veio reclamar da demora na conclusão de um trabalho, o Sr. Bartolomeu ficou fulo. Suas mãos começaram a tremer, ele engoliu a seco e um ar quente saiu de suas narinas. Todavia, não ousou retrucá-lo. Assim que o português virou as costas, num ato impensado, jogou o café que havia começado a tomar no computador. O café escorreu pelas laterais e pela parte de trás da CPU, atingindo a fonte de tensão, que, após um breve momento, emitiu um chiado, seguido por um pipocar, denunciando que seus capacitores explodiram devido ao curto-circuito causado pelo líquido. Sem se abater, pegou a toalhinha que sempre deixava à sua disposição, limpou externamente o equipamento e foi comunicar ao chefe que seu objeto de trabalho havia pifado.

O Sr. Bartolomeu, orientado pelo chefe português, foi ao almoxarifado e solicitou um novo computador.

O responsável pelo almoxarifado chamava-se Divino e era um daqueles que o Sr. Bartolomeu mais odiava. Uma vez, sem que ele o percebesse, ouviu-o chamá-lo de rebite, fazendo referência à sua cabeça. Pelo menos, pensou o programador, cabelo ele tinha, não aquela careca horrorosa e brilhante que enfeitava o corpo do almoxarife. E guardou seu ódio, bem guardado, em algum cantinho de sua mente, para usá-lo no momento certo.

Quando retornou à sua sala de trabalho, Bartolomeu trazia nas mãos um velho notebook cinza-escuro, da marca “Twilight”, que, mesmo sendo ele um expert em tecnologia, jamais ouvira falar. O almoxarife, que não soube dizer desde quando aquele computador se encontrava ali, acabou por cedê-lo ao programador, pois não havia outro equipamento disponível.

Uma hora depois, finalmente conseguiu instalar o equipamento, porque a tomada dele era diferente e tiveram que providenciar um adaptador.

Ao ligar o notebook, para surpresa do Sr. Bartolomeu, em vez de aparecer o sistema operacional, surgiu a seguinte mensagem: “Conecte um microfone e fale o que deseja”. Apesar de a mensagem ser inusitada, ele resolveu segui-la. Pegou o fone de ouvidos com microfone que estava em uma das gavetas da mesa, colocou-o sobre a cabeça, conectou-o no aparelho e se preparava para falar quando José Manoel, o português mais filho da puta que ele conheceu, entrou e, aos berros, exigiu que ele entregasse o trabalho. Chamando-o de pateta, saiu sem dar tempo a qualquer reação do subordinado.

Assim que o chefe virou as costas, o Sr. Bartolomeu, mais indignado do que nunca, disse à meia voz: “Gostaria que esse desgraçado sumisse”.

Uma hora e meia depois, o programador foi à sala do chefe informar que o trabalho havia sido concluído. Não encontrando o português, foi falar com a Sra. Wanda. A recepcionista, prontamente, estranhou que o chefe não estivesse na sala dele, pois em nenhum momento o viu passar por ela, lembrando que a mesa em que ela ficava era de fronte à sala de José Manoel.

A Digital Tecnologia ocupava três andares do mesmo prédio. Como encontraram o celular do português caído no chão da sala dele, interfonaram para os outros ramais e pediram ao contínuo que verificasse os banheiros e as escadas. Depois, foram à recepção no térreo do edifício, e as pessoas da portaria afirmaram que José Manoel não passara por ali. Mesmo assim, verificaram as câmeras e comprovaram a informação da portaria.

De repente, algo “explodiu” na cabeça do Sr. Bartolomeu. Uma ideia maluca lhe passou pela mente e ele, extasiado, decidiu testá-la. Sentou-se na frente de sua mesa, tirou os óculos e limpou as grossas lentes com a toalhinha suja de café. Pegou o fone de ouvidos com microfone, colocou-o novamente na cabeça e, de olhos fechados, disse: “Quero que o desgraçado apareça!”. Não precisou nem abrir os olhos, porque, em seguida, escutou a voz odiosa do português, em berros, exigindo saber o porquê da sala dele estar toda revirada.

O Sr. Bartolomeu pegou o notebook e o trancou no armário que ficava em sua sala. Apanhou as chaves, colocou-as no bolso da calça e, pela primeira vez, em pelo menos dez anos, foi para casa mais cedo.

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A madrugada encontrou o Sr. Bartolomeu possuído por uma insônia avassaladora. Dezenas de vezes ele se revirou de um lado para o outro da cama. Dezenas de vezes cobriu-se e se descobriu. Levantou-se para ir ao banheiro pelo menos três vezes. Em um dado momento, acreditou que estava com febre, pois sentia muito calor, mas, no instante seguinte, já sentia frio. Às 5h da manhã, resolveu se levantar. Por um minuto, duvidou da própria sanidade. Pensou que os acontecimentos do dia anterior seriam decorrência do estresse em que vivia. Decidiu que precisava ir para a empresa e tirar a prova dos nove. Tinha que saber se tudo o que passou no dia anterior realmente acontecera ou teria sido obra da imaginação dele.

Bartolomeu chegou à firma como um autômato e subiu sem cumprimentar os porteiros. Não pronunciou nem o “bom dia” forçado que todos os dias dava à Sra. Wanda. Entrou em sua sala, trancou a porta, pegou as chaves que estavam em seu bolso e abriu o armário. Por alguns segundos, observou o velho notebook cinza-escuro e, pegando-o, colocou-o em cima da velha mesa que usava há tantos anos. Prendeu em sua cabeça o fone de ouvidos com microfone e, um pouco hesitante, disse: “Eu agora sou o dono da empresa”. Logo depois da pequena vertigem que sentiu, abriu os olhos e estava sentado atrás de uma enorme e bela mesa, em uma cadeira imponente, que somente presidentes de empresas ousariam possuir.

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Caro leitor, se você ainda não percebeu, fique atento: saiba que o Sr. Bartolomeu é um homem vingativo e, agora, irá atrás dos seus desafetos.

A primeira providência do Sr. Bartolomeu como dono da Digital Tecnologias Avançadas foi berrar com o chefe da TI e, em seguida, despedi-lo, mas antes, determinou ao velho notebook que José Manoel ficasse gago. Depois, ordenou que o pênis do analista de sistemas Figueiredo tivesse apenas três centímetros.

O almoxarife Sr. Divino, da careca lustrosa, em um determinado dia, acordou com sua cabeça possuindo o dobro do tamanho de antes. Apesar dos inúmeros médicos que visitou, nenhum deles conseguiu determinar a causa do intrigante fenômeno.

A senhorita Amélia era, sem dúvida, a mulher mais bonita da empresa. Bem formada de corpo e inteligência, exercia a gerência de marketing. Nunca, nem em seus maiores pesadelos, aventou ter qualquer relacionamento com o Sr. Bartolomeu. Ela fazia um esforço danado, todavia, não conseguia lembrar como ele se tornou o dono da corporação. Contudo, de repente, sentiu uma atração irresistível pelo antigo programador. Seus hormônios dispararam de uma forma que, somente em pensar no seu agora chefe, sentia suas partes íntimas se umedecerem. De rompante, entrou na sala de Bartolomeu fitando-o languidamente, trancou a porta, tirou a roupa, sentou-se no sofá que compunha o ambiente e abriu as pernas em um convite que não permitia indecisão.

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Em um mês e meio, a Digital Tecnologia suplantou em faturamento, vendas e serviços o volume correspondente ao que a Microsoft, Apple e Amazon apresentavam juntas. Para comemorar, o Sr. Bartolomeu decidiu que agora teria a cara do ator Cauã Reymond.

Sendo dono da maior companhia do mundo, era bajulado e recebido por presidentes, reis, rainhas, ministros e ditadores. Viajou para as cidades mais importantes do planeta Terra e até para a Lua.

Bartolomeu tornou-se o maior conquistador que andou pela Terra, e seu nome tornou-se a maior referência lendária no assunto, suplantando em muito o famoso Don Juan. Namorou atrizes, misses, socialites, princesas e plebeias. Em resumo: “passou o rodo em geral”.

Um dia, o Sr. Bartolomeu cansou das farras e resolveu se casar. Queria constituir família e ter filhos. Optou pela secretária dele, a Srta. Amélia, que era uma mulher de qualidades físicas e intelectuais invejáveis. Ainda assim, voltou ao velho notebook e ordenou que ela fosse uma mulher fiel e submissa a ele.

Manteve o notebook “Twilight” guardado em um cômodo da grande mansão que construiu do nada e sempre carregava a chave da porta nos bolsos da calça que estivesse vestido.

Um ano depois da maior festa de casamento que se viu no planeta Terra, Amélia ficou grávida. Os exames logo mostraram que seria um menino da forma que o pai desejava. Bartolomeu se valeu mais uma vez do velho notebook e determinou que seu filho seria um gênio, que, quando contasse com quatro anos, teria a compreensão e a maturidade de um jovem de doze anos. Assim que o menino nasceu, o orgulhoso pai o batizou com o nome de Einstein.

Oito anos se passaram depois do nascimento da criança. Entretanto, o jovem Einstein, aos 8 anos de idade, na verdade era um adolescente de 16 anos, no comportamento e nos desejos. As brigas com seu pai tornaram-se constantes. O rapaz queria sair sozinho, arranjar amigos mais velhos e já pensava em namorar. Todavia, tudo lhe era proibido, e a mãe dele sempre acatava as decisões do marido. O pequeno gênio desenvolveu pelos pais um terrível ódio e, o pior: se possuía uma característica herdada do pai, essa era o rancor. Um rancor mórbido e vingativo.

Agora, o que intrigava mesmo a Einstein era aquele cômodo que seu pai mantinha trancado, despertando nele uma curiosidade enorme. Apenas uma vez, quando contava com três anos de idade, viu o interior dele: uma mesa, duas cadeiras e, na parede, um cofre. Percebeu também um notebook cinza-escuro, que estava em cima da mesa.

A cada três meses, o Sr. Bartolomeu realizava em sua linda mansão festas espetaculares e convidava a nata da sociedade brasileira. Os festins, por mais de uma vez, perduraram por mais de dois dias seguidos. E foi em um desses regabofes que Einstein viu a oportunidade de matar a curiosidade dele sobre o que realmente havia e acontecia no quarto secreto que o seu pai mantinha fechado a sete chaves.

Na tarde do segundo dia de mais uma festança promovida por Bartolomeu, um dos garçons veio lhe avisar que o uísque estava acabando. O anfitrião não se fez de rogado; confirmou que as chaves de seu cômodo (quase secreto) estavam no bolso da calça dele e foi providenciar mais algumas garrafas de uísque.

O que o Sr. Bartolomeu, um tanto ébrio, não percebeu foi que seu filho acompanhou todos os seus passos e entrou sorrateiramente atrás dele, conseguindo se esconder no lado oposto da grande mesa que ajudava a compor o ambiente.

Einstein, muito surpreso, viu o pai retirar o notebook do cofre, colocá-lo sobre a mesa e, após ligá-lo, dizer: “Quero uma caixa de doze litros de uísque Johnnie Walker dezoito anos”. Maravilhado, o rapaz presenciou a materialização da caixa de uísque, do nada.

Assim que Bartolomeu saiu e trancou a sala, Einstein ligou o notebook “Twilight”, colocou o fone de ouvidos com microfone na própria cabeça, da mesma forma que viu o pai fazer, lembrou-se do ódio que sentia por ele e disse: “Gostaria que meu pai nunca tivesse existido!”.

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Cento e sessenta e sete pessoas jamais conseguiriam explicar como foram parar no meio de um terreno baldio, de vinte mil metros quadrados, no Lago Sul de Brasília, cercado pela mata do cerrado.

 

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2 Comentários

  1. Gilson Pereira de Lacerda

    Muito bom.

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