Sumario
Introdução
- Ensaio I – A Morte e o Mito
- Ensaio II – O Tabu da Morte
- Ensaio III – A Morte e o Espírito
Posfácio – Viver é Ensaiar a Morte
Introdução
Escrever sobre a morte não foi, em nenhum momento, um exercício de morbidez. Foi, antes, um gesto de coragem, e sobretudo de escuta interior. Quando publiquei o primeiro Ensaio Sobre a Morte no Blog do Gil, não imaginava que ele alcançaria tantas pessoas. E, no entanto, ali estava a evidência: mesmo sendo um dos maiores tabus da humanidade, a morte desperta um interesse profundo — por medo, por dor, por curiosidade, ou por uma busca genuína de sentido.
A morte é universal, democrática, definitiva — e, paradoxalmente, mal compreendida. Evitamos seu nome, disfarçamos sua presença com eufemismos, afastamos sua imagem dos olhos. Mas ela continua ali, silenciosa, à espreita, não como castigo, mas como parte do ciclo da existência.
Estes ensaios não pretendem oferecer respostas definitivas. Não se trata aqui de doutrinação ou consolo fácil. São reflexões abertas, escritas a partir da minha vivência, de leituras, observações e, principalmente, da escuta do que pulsa dentro de cada um de nós diante da perda, da saudade, e da consciência da própria finitude.
Neste pequeno livro, convido o leitor a caminhar por três trilhas: a morte como símbolo e mito; a morte como tabu social e psicológico; e a morte como passagem espiritual. Que este passeio provoque mais perguntas que respostas — pois é assim que se amadurece.
Afinal, talvez encarar a morte de frente seja o que nos torna mais vivos.
Ensaio I – A Morte e o Mito
Tânato na mitologia grega era a personificação da morte. Filho de Nix, a noite eterna, que o concebera sem o auxílio de nenhum outro deus.
Irmão do Sono (Hipnos), Tânato era inimigo implacável do gênero humano e odiado até pelos Imortais. Ele fixou a sua morada no Tártaro, segundo Hesíodo, diante da porta dos Infernos, segundo outros poetas. Tinha como data preferida para arrebatar as vidas, o dia 21 de agosto.
Para os Cristãos, ao homem foi imputada a morte porque Adão e Eva, desobedecendo a Deus, comeram do fruto da árvore do bem e do mal, sendo por isto punidos com a morte, primeiramente moral, e depois com a morte física, como resultado da maldição divina.
As diversas religiões, se concordam com a origem da morte, divergem claramente sobre o que vem após ela. Umas afirmam que haverá o dia do julgamento final e o homem ressuscitando do pó será julgado conforme suas obras. Outras, que o homem que cumpre a vontade de Deus irá para o Paraíso. Algumas, ainda, acreditam que a alma se desprenderá do corpo e ocupará seu lugar em um mundo espiritual.
Conjecturas à parte, fato é que o temor da morte atinge a maioria esmagadora da população humana. Mesmo os que mais se dizem crentes temem a hora em que seus olhos serão cerrados pelo abandono da vida de seus corpos, lhes tornando rígidos e frios, para em seguida iniciar-se o processo de deterioramento carnal (“és pó e em pó te tornarás” (Gn 3.19).
Os escritores usam e abusam da morte em seus romances. Alguns, em suas histórias, até permitiram à morte tirar férias; como fez Érico Verissimo em Incidente em Antares, e José Saramago em As Intermitências da Morte. Nos dois livros, as férias da morte causam um verdadeiro caos na sociedade, a partir do momento em que ninguém mais morre, mesmo sendo vítimas de acidentes que seriam normalmente fatais, ou atacados mortalmente por outrem.
Verdadeiras dores sentem, normalmente, as pessoas quando perdem um parente que amam. A hora do enterro, a chamada despedida final, é ocasião de lágrimas e tristeza exacerbada. Rituais como a missa de sete dias servem para levar um pouco de alento aos parentes e amigos daquele que morreu há uma semana. Pais que perdem os filhos se lamentam pelo resto da vida. As mortes violentas geralmente revoltam aos homens de bem. Os acidentes fatais nos lembram que, talvez, pudessem ser evitados.
Todavia, como tudo nesta vida é passageiro, incluindo a própria vida; o Tempo, Senhor dos nossos dias, abranda os corações saudosos e a dor.
O Tempo, a cada passagem de seus segundos, nos lembra, inclementemente, que Tânato está a nos contemplar, esperando o dia de nos levar à sua morada, para encontrarmos os que lá foram habitar primeiro.
Ensaio II – O Tabu da Morte
Meu primeiro texto, “Ensaio Sobre a Morte”, publicado no Blog do Gil, já superou a casa de cento e trinta seis mil visualizações. Falar sobre a morte continua sendo um tabu, porém, a quantidade expressiva de pessoas que leram o texto demonstra que o assunto desperta o interesse, mesmo que seja apenas por curiosidade. Portanto, resolvi aqui, abordar outros aspectos sobre a morte, que não estão na primeira publicação.
Tal qual dissemos, o tabu persiste, e conveniências sociais nos levam a evitar falar desse acontecimento e a substituir a palavra “morte” por eufemismos. Então, deixamos de falar sobre a morte, bem como deixamos de usar a palavra “morrer” e passamos a usar outras similares. Em vez de “morto”, dizemos “falecido”. Em vez de dizer que alguém está morrendo, dizemos que ele está “muito doente” ou “moribundo”.
O uso desses eufemismos, muitas vezes levam as famílias a não entenderem que para o seu ente querido a morte está próxima, ocasionando falsas esperanças. Por outro lado, mesmo quando se percebe que o fim da vida de determinada pessoa está chegando, não sabemos o que dizer para ela, para nós mesmos, ou para amigos e parentes.
O quadro da morte é sempre marcado pela tristeza, ansiedade, falta de esperança e até a revolta, tornando sempre difícil a perda de uma pessoa que amamos. Mas tem que ser assim? Será possível que aprendamos a aceitar a morte de uma forma normal?
Lembramos; morrer, assim como nascer, é um processo natural. Com o passar do tempo, vamos envelhecendo, cansando e dormindo mais facilmente. Outros processos de deterioração do corpo, também se tornam visíveis, impactando na qualidade de vida de cada um de nós.
É provável, que tenhamos perdido ou nunca tivemos a sabedoria de lidar e aceitar a morte. Entretanto, como lidar com as mortes repentinas? Como lidar com a solidão que pode advir da perda de alguém que era nossa única companhia? Como aceitar a morte dos mais jovens? Se alguém possuir a fórmula da aceitação, deve fazê-la conhecida.
Acredito que falar sobre a morte é demonstração de sabedoria. É assunto para recuperarmos e debatermos. Enfim; é tabu que deve morrer!
Ensaio III – A Morte e o Espírito
Falar da morte é, antes de tudo, falar da vida. Ou, talvez, falar da vida com mais profundidade seja impossível sem considerar a morte como parte indissociável dela.
Se no primeiro ensaio vislumbramos a figura mítica de Tânato e as concepções religiosas do pós-vida, e no segundo falamos dos eufemismos e do medo social de nomear o inominável, agora é necessário adentrar uma outra camada: aquela em que a morte se revela como experiência espiritual.
Não espiritual apenas no sentido religioso, mas espiritual enquanto fenômeno que transcende o corpo, que toca a alma, que nos obriga a olhar para dentro e encarar a finitude como espelho da eternidade.
Talvez, o que mais nos apavore não seja a morte em si, mas o desconhecido que ela representa. Morrer não dói, já disseram alguns. O que dói é o desapego, o deixar ir, o romper com o que é familiar, visível, tangível. É o desprendimento do ego, do nome, da história. Mas se há, como creem muitas doutrinas espirituais, uma alma imortal habitando esse corpo efêmero, então morrer é apenas atravessar um véu – e o nascimento, o início do esquecimento temporário do que realmente somos.
Nas tradições budistas, fala-se em bardo, o estado intermediário entre a morte e o renascimento. No espiritismo kardecista, aprendemos que o espírito sobrevive ao corpo, e leva consigo tudo aquilo que aprendeu, amou e sofreu. Já em algumas filosofias orientais, morrer é dissolver-se no Todo, reencontrar a unidade da qual fomos momentaneamente separados.
E aqui, surge uma questão essencial: estamos preparados para morrer? Estamos preparados para ver partir os que amamos, ou mesmo a nós mesmos, com serenidade? Ou ainda vivemos como se a vida fosse eterna e a morte, uma intrusa inesperada?
Viver espiritualmente é, talvez, aprender a morrer todos os dias. Morrer para o orgulho. Morrer para o passado. Morrer para a vaidade. É renascer em compaixão, em verdade, em presença.
Os que já acompanharam de perto o processo da morte de alguém querido sabem: há uma sabedoria profunda naquele instante. Os olhos que se apagam dizem muito. Às vezes, mais do que uma vida inteira de palavras. É quando percebemos que as grandes questões da vida não cabem nas pequenas ambições humanas.
A espiritualidade nos convida a encarar a morte com dignidade e humildade. Não como tragédia, mas como retorno. Não como fim, mas como continuidade em outra frequência.
É possível que um dia vejamos a morte com menos pavor e mais reverência. Que sejamos capazes de preparar nossos filhos não apenas para os desafios da vida, mas para o entendimento de que a morte é parte da travessia.
Talvez, então, nos libertemos da prisão do medo. Talvez, enfim, celebremos a vida com mais intensidade, por sabermos que cada instante é dádiva e cada despedida, uma ponte para o invisível.
Posfácio – Viver é Ensaiar a Morte
Viver bem talvez seja, em alguma medida, morrer um pouco a cada dia — desapegar-se de ilusões, encerrar ciclos, aceitar as mudanças do corpo e da alma. Ensaiar a morte não como fim, mas como transcendência.
Ao longo destas páginas, olhamos para a morte por diversos ângulos. A reconhecemos nas tradições míticas, nas religiões, no sofrimento da perda, no silêncio dos cemitérios, nas palavras não ditas. Mas também a vimos nos olhos dos que partem em paz, na sabedoria de quem aceita o tempo, e nas promessas de que há algo além do que os olhos alcançam.
A morte, por mais difícil que seja, pode ser um espelho para a vida. Um lembrete do que é essencial. Uma convocação à verdade.
Talvez este seja o seu maior papel: nos fazer lembrar de que o tempo é precioso, de que os afetos não devem ser adiados, e de que toda vida, por mais breve que seja, deixa marcas eternas.
E se, como disse o poeta Rainer Maria Rilke, “a vida e a morte são um só, como o rio e o mar são um só”, então que saibamos navegar com coragem. Porque viver, no fundo, é preparar-se para esse grande reencontro com o invisível.
Que a morte, enfim, nos ensine a viver melhor.