“Brasília, Subsolo 3: A História que Quase se Apagou”

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Um relato ficcional baseado em episódios reais da repressão durante a ditadura militar brasileira, retirado do livro “Terras dos Homens Perdidos” de Gil DePaula

Em 1970, localizava-se, no Setor de Autarquias Sul de Brasília, a sede da Secretaria de Apoio Governamental, conhecida como SAG. O edifício que abrigava a secretaria era um prédio de seis andares, composto por três subsolos, térreo, primeiro e segundo andar. Nele, somente era permitida a entrada de pessoas lotadas, tais como servidoras da casa, ou autorizadas expressamente por uma autoridade militar. Esse local, no início dos anos 90, sofreria um incêndio que destruiria grande parte da memória da repressão política dos anos 70, ocorrida no Distrito Federal. Pois, ali, sob o manto do disfarce, funcionava, na realidade, o DOI-CODI de Brasília.

*

A claridade intensa da lâmpada de alta potência colocada no centro da sala, cega momentaneamente Ariosvaldo, quando o capuz que a mais de dezoito horas lhe cobre a cabeça é retirado. Ele, agora, está totalmente desnudo e suspenso a quarenta centímetros do chão, em uma estrutura de metal que lembra um cavalete. Uma barra de ferro está colocada debaixo da dobra dos seus joelhos, e seus braços passam por baixo dela. Suas mãos estão atadas à frente de sua canela. Ari está preso a um instrumento de tortura conhecido como “pau-de-arara”.

Na madrugada e até mesmo durante o dia, escutou gritos e gemidos e choros. Apesar de não poder enxergar por causa do capuz que lhe cobria a visão, acreditou que estava em uma prisão. O que ele não sabia é que estava no terceiro subsolo do DOI-CODI. Até ser levado para aquela sala, ficou em uma cela escura, sem cama ou cadeiras, e não dormiu nem comeu. Contudo, estranhamente, não sentia fome, pois o medo lhe dominava. Medo de morrer. Medo de não ver mais seus filhos. Medo de não ter mais Ana Clara em seus braços.

Ari não conseguia entender o que estava acontecendo. Sempre foi um simplório. Não muito inteligente. Somente depois que começou a viver com Ana Clara, veio a progredir na vida. A mulher era boa de conta e segura nas despesas: graças a ela, conseguiram criar um pé-de-meia.

Por duas vezes, ainda dentro do carro, ele pediu aos homens que lhe perdoassem. Explicou que falou o que falou do presidente apenas por raiva do bêbado que lhe perturbara. Disse que era um homem de paz, que tinha filhos para criar, e pediu que o deixasse ir embora. Na terceira vez, levou um tremendo sopapo no pé-de-ouvido, depois não disse mais nada.

Apesar da posição que se encontrava no pau-de-arara, entreviram, na sala, vários instrumentos estranhos. Não teve dúvidas para o que serviriam.

O militar, vestido com a farda camuflada do exército que lhe retirará o capuz, possuía nítida descendência oriental, e parecia não lhe dar muita importância, até que os outros dois homens entraram na sala. Um deles é o capitão Rieth. O outro usa uma balaclava que lhe deixa apenas os olhos a descoberto. Ao vê-los, toma posição de sentido, bate continência e pergunta:

— Posso começar, capitão?

— Sim, tenente Takahashi. Inicie o interrogatório.

O tenente Marçal Takahashi é um homem de pequeno porte, magro, e os óculos que usa lhe proporciona um certo ar intelectual. Takahashi se considera um especialista na arte de fazer um homem dizer a verdade, e Takahashi, assim como Iracildo, já torturaram inúmeras vezes. Eles sentem prazer físico e psíquico com a dor infligida a outrem, porquanto, eles já se bestializaram. Pertencem a uma classe de indivíduos “especiais”, pois são capazes de torturarem até as pessoas mais frágeis da própria família. Aliás, como um dia comprovarão os filhos de Iracildo. Quando se aproxima de Ari, os olhos de Takahashi brilham de excitação.

Seu nome completo… terrorista.

— Ariosvaldo da Silva. Pelo amor de Deus, eu não sou terrorista. Eu juro que não sou terrorista.

— Responda apenas o que o tenente mandar. – ordena Rieth.

Como pode um homem casado e com dois filhos querer destruir o nosso grande Brasil? – disse Takahashi em um tom cordial, que exprime surpresa. – Como pode querer acabar com a segurança de um grande povo unindo-se a comunistas?

— Senhor… eu não quero destruir nada senhor. Eu não sou comunista. Eu não conheço nenhum comunista. Eu juro pelos meus filhos!

— Você jura por seus filhos? Pelos filhos que você teve com uma puta? Uma rameira que você tirou do puteiro. Desde quando filho de puta tem pai? Só me faltava essa! Agora, até filho da puta já sabe quem é o pai. – solta, em gargalhadas jocosas, o tenente Takahashi, provocando a risada dos outros dois torturadores.

A vergonha da humilhação brota em soluços do peito de Ari, que não consegue se conter e chora. O aviltamento físico que lhe é imposto, por estar preso ao pau-de-arara, é menos doloroso do que a degradação psicológica que as palavras do tenente lhe causam. As risadas zombeteiras dos seus algozes são como lâminas que lhe trespassa. Naquele momento, Ari toma a resolução mais corajosa da sua vida: aqueles homens, daí por diante, não escutarão uma única palavra saída de sua boca. Que o matem!

— Olha, Ariosvaldo! Nós podemos fazer um acordo. Você nos diz os nomes das pessoas que compõe o seu grupo de terroristas. Nos conta onde vocês se reúnem, e nós deixamos você ir embora. Que tal?

— Vamos, homem! Responda ao tenente!

— Nos dê os nomes de alguns dos subversivos e você volta pra sua mulher… não vai falar, né? Sabe, Ariosvaldo, apesar de você ser um subversivo, você tem cara de gente boa. Tem mais cara de corno safado, é verdade. Mas, todo o corno que eu conheci era gente boa. Me conta. Quantos chifres você já levou? Quanto galhos aquela puta já te colocou?

E como Ari permanece calado, o tenente volta à carga:

Eu estou achando, Ariosvaldo, que o gato comeu a sua língua. Mas vamos ter certeza disso. Agente Pardal, pega pra mim a pimentinha que está no canto da sala. – solicita ao homem mascarado.

A pimentinha é uma máquina simples. Constitui-se de uma caixa de madeira, onde dentro dela é colocado um imã permanente, no campo do qual gira um rotor, de cujos terminais uma escova recolhe corrente elétrica e a conduz por meio de fios. Consegue produzir choques de até 100 volts e 10 amperes, dependendo da velocidade com que se gira a alavanca externa.

Calmamente, Marçal Takahashi prende os fios nos pés do supliciado, que treme a olhos vistos. Ari não conhece aquele aparelho, mas sabe que não vem boa coisa.

— Agente Pardal, faça as honras da casa. — galhofa Takahashi, apontado para Ari.

O agente mascarado Pardal, aproxima-se da pimentinha e começa a movimentar sua manivela. Choques violentíssimos de grande amperagem percorrem o corpo de Ariosvaldo, causando-lhe fortes espasmos. O suor do medo e do sofrimento lhe cobre o corpo. Ele tenta se manter calado. O tenente o instiga a dizer os nomes dos seus supostos comparsas. Afirma que vai matar a prostituta que ele tem como mulher e aleijar os filhos dele. Lágrimas de dor descem dos olhos de Ari. Seus pés começam a queimar e acabam por ficar em carne viva. A dor dos choques combinada com a tortura do pau-de-arara se torna insuportável. Ele, então, não consegue cumprir a decisão de ficar calado e grita. Grita, clama por Deus e desmaia. A água de um balde é despejada em seu rosto e o ajuda a despertar. O tenente se aproxima. Tem, nas mãos, uma grossa palmatória de madeira. Com ela, bate repetidas vezes nas nádegas de Ari, até que a pele se rompe e o sangue jorra. Em seguida, aplica nos ouvidos dele, um golpe com as mãos abertas, conhecido por “telefone”. Ele urina e desmaia pela segunda vez. Entretanto, isso é apenas o começo, pois o que aqueles homens supostamente querem, ele não pode lhes dar. Ele, em sua vida, nunca conheceu um terrorista.

Comentário Crítico do ChatGPT Sobre o Texto

O trecho de Terras dos Homens Perdidos que você compartilhou é potente, brutal e revelador, e se insere de forma contundente dentro da tradição do romance político de denúncia — em especial aquele que trata da repressão durante a ditadura militar no Brasil. A cena é densa e literariamente bem construída, com um realismo que causa desconforto, como deve ser em um retrato fiel da tortura estatal.

Aqui estão alguns pontos de análise mais detalhados:

Contextualização histórica

O início do trecho ancora a narrativa em um local e tempo muito específicos: o prédio da SAG, que na ficção é revelado como sede clandestina do DOI-CODI em Brasília. Isso confere verossimilhança histórica, uma vez que centros de repressão costumavam operar disfarçados dentro de repartições públicas. A menção ao incêndio nos anos 1990, que destruiu parte da memória da repressão, é uma crítica sutil, mas direta, ao apagamento deliberado da história — o que dá ao romance um valor também memorialístico.

Representação da tortura

A descrição da tortura é realista, crua e angustiante. A escolha do “pau-de-arara”, da “pimentinha”, do “telefone”, e da humilhação verbal segue os relatos reais de presos políticos da época. O trecho não se furta de mostrar o aspecto sádico e desumanizador dos torturadores — com destaque para o personagem Takahashi, que representa o tipo funcional e ideologicamente cínico da repressão.

A alternância entre a violência física e psicológica torna a cena ainda mais impactante. A humilhação sobre a esposa de Ariosvaldo, o riso dos torturadores e o uso de termos como “rameira” e “corno” são usados para degradar o homem além do corpo — atingem sua dignidade, masculinidade e afetos.

Construção do personagem Ariosvaldo

Ari é uma figura trágica e empática. Ele é descrito como “simplório”, sem ideologia clara, apanhado de forma absurda e injusta por uma fala impensada. Sua inocência — que contrasta com a brutalidade dos algozes — reforça a crítica do romance à banalização da repressão e ao uso do terror de Estado contra qualquer cidadão.

Sua decisão de permanecer calado, apesar do medo e da dor, o eleva a um lugar de resistência digna e heroica — mesmo sem ter sido um ativista político, torna-se mártir de um regime cruel. Esse paradoxo é poderoso: o personagem que não luta por uma causa acaba personificando a denúncia mais pungente dela.

Estilo e ritmo

O estilo narrativo é direto, visceral e eficaz. Você alterna o descritivo com o dramático sem tornar o texto expositivo demais. O uso de frases curtas nos momentos de tortura cria tensão, enquanto trechos mais longos e introspectivos (“medo de morrer”, “medo de não ver mais seus filhos”) humanizam o personagem, gerando identificação emocional com o leitor.

Função social e política do texto

O capítulo é um ato de denúncia literária, recuperando o horror da ditadura militar brasileira e suas práticas de repressão. Ao fazer isso por meio da ficção, você restitui à memória coletiva experiências que parte da sociedade tenta minimizar, negar ou apagar. Essa função é fundamental em tempos de revisionismo histórico.

Conclusão

Este trecho é literariamente poderoso e politicamente relevante. O modo como você recria a atmosfera dos porões da ditadura, sem atenuar a violência e sem recorrer ao panfleto, contribui para uma literatura de memória profundamente necessária. Ariosvaldo, como personagem, representa os “homens perdidos” do título — vítimas esquecidas de um sistema que torturava não apenas os corpos, mas também a história.

Livros de Gil DePaula

www.clubedeautores.com.br — www.editoraviseu.com.br — gildepaulla@gmail.com

Terras dos Homens Perdidos – Gil DePaula (2017)

https://clubedeautores.com.br/livro/terras-dos-homens-perdidos

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Terras dos Homens Perdidos, de Gil DePaula, é uma ficção histórica que explora a fundação de Brasília e o impacto da construção da nova capital na vida de brasileiros comuns. A narrativa é ambientada entre 1939 e 1960 e segue o drama de Maria Odete, uma mulher forte e resiliente, que relembra seu passado de desafios e desilusões enquanto enfrenta as dores do parto. Sua trajetória é entrelaçada com a história de dois fazendeiros rivais e orgulhosos, ambos chamados Antônio, que lutam pelo poder em meio a uma teia de vingança, traição e tragédias pessoais.

A obra destaca o cenário do interior brasileiro e a saga dos trabalhadores que ergueram Brasília com suor e sacrifício. Gil DePaula usa seu estilo detalhista para pintar um retrato das complexas interações humanas e sociais da época, onde paixões e rivalidades moldam o destino de seus personagens e refletem as transformações de uma nação. A obra combina realismo com uma narrativa de intensa carga emocional, capturando tanto a grandeza da construção da capital quanto as pequenas tragédias pessoais que marcaram sua fundação​.

Para saber mais sobre o livro ou adquirir uma cópia, você pode encontrá-lo em sites como o Clube de Autores ou por meio do e-mail:

gildepaulla@gmail.com

O Baú das Histórias Inusitadas

https://clubedeautores.com.br/livro/o-bau-das-historias-inusitadas-2

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Abra o baú, tire a tampa da imaginação e prepare-se para um banquete literário!

Nessa coletânea de 18 contos temperados com pitadas de ficção científica, goles de aventura, colheradas generosas de ironia e uma lasquinha de romance, o que você encontra é um cardápio para o espírito — daqueles que alimentam o riso, o susto e a reflexão.

Cada história é uma cápsula do inesperado: ora te joga no passado, ora no futuro, ora te deixa rindo de nervoso. Ideal para quem lê aos goles ou engole de uma vez.

“O Baú das Histórias Inusitadas” é leitura para todos os gostos — mas só para quem gosta de se surpreender.

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