“SOBRE ABRANTES”
O Deputado
Adorava ir ao púlpito da Câmara Legislativa e discursar. Gostando, particularmente, de exaltar suas propostas, sua reputação ilibada, seus colegas, a importância que tinha aquela Casa para os brasilienses, porque nunca houvera deputados distritais tão empenhados em suas funções, tão honestos com a coisa pública, afirmava ele. E por aí se empolgava, proferindo discursos que invejariam a Odorico Paragaçu, de tanta prosopopeia e retórica inócua.
Mas naquele dia, acordou às quatro horas da manhã, e sentiu-se inquieto. Refletiu sobre sua vida e achou que estava passando dos limites; porquanto, era um homem que ao chegar a deputado já tinha suas posses.
José Prudente era um empresário conhecido. Seus negócios se estendiam desde as construtoras, passavam por concessionárias de carros, restaurantes e boates. Quando recebeu o convite do partido para concorrer às eleições, só pensou no status que iria adquirir. No orgulho que teria em dizer para a família que ostentava o título de deputado. Imaginou, também, que seria fácil favorecer seus negócios, o que realmente aconteceu.
Quando saiu de casa, se dirigindo à Câmara Legislativa, já tinha tomado uma resolução.
Às dez horas, estava previsto o início da primeira sessão do dia que principia com um atraso de quase uma hora. Mal o presidente da CLDF dá por iniciados os trabalhos, José Prudente pede a palavra. Como é muito apreciado por todos, que adoram suas bajulações, a palavra lhe é concedida. E, para surpresa geral, assim discursa:
— Excelentíssimo Senhor Presidente da Câmara Legislativa. Senhores deputados da Casa… Bom dia! Hoje, venho a esta tribuna afirmar que sou indigno desta cidade, que sou indigno de aqui estar como representante do povo brasiliense, como indignos, também, de estar aqui são vários dos colegas que comigo compõe esta assembleia. – Alguns se entreolham, mas todos permanecem em expectativa muda. – Na realidade nunca pensei em trabalhar por esta cidade. O que me trouxe aqui foram duas coisas: a busca por mais status social, e a facilidade que teria de trazer novos negócios para minhas empresas, honestos ou não, pouco para mim importava. Alguns amigos, empresários como eu, ajudaram no financiamento da campanha, visando obter as benesses que fossem possíveis, no que ajudei. Como empresário corrompi… Como deputado, me deixei corromper. Eu, mais alguns dos que estão aqui, recebemos dinheiro para aprovar projetos do interesse do governo, bem como colocamos pessoas trabalhando aqui, e temos ficado com, no mínimo, cinquenta por cento dos salários delas. – A agitação é geral, o presidente tem que gritar para acalmar os ânimos. A imprensa filma, tira fotos, escreve e adora.
– O dinheiro que recebemos para gastos com combustíveis, alimentação e outras coisas, tenho sempre desviado uma parte para minhas futuras campanhas. Os elogios, Senhor Presidente, que tenho rasgado ao senhor, são falsos, pois sei de todas as suas falcatruas quando foi secretário de governo. Na realidade, Senhor Presidente e colegas não tão nobres, eu sinto nojo da maioria de vocês. No “impeachment” do ex-governador, muitos daqueles que discursaram e apoiaram, citavam que o faziam pela família, pela cidade, pelo país, quando sempre procederam ou igual ou pior. Melhor seria se esta Casa não existisse! E… Mais uma coisa: vão todos pra puta que os pariu!
Flashes pipocam! Alguém empurra alguém! Um vidro é quebrado. O Presidente grita! José Prudente se esgueira e abandona o recinto! Os seguranças avançam!
***
O Marido
Estavam prestes a completar trinta e cinco anos de casados, e Maria tinha em alta conta o marido. Ela seria capaz de jurar de pés juntos e mãos entrelaçadas à altura do peito, que ele era o mais honesto dos homens, se não fosse o último. Gabava-se para a família e para os amigos, que, em quase trinta anos de trabalho no ministério da saúde, Hélio, que era um trabalhador dedicado, nunca se deixou corromper e, por isso, chegara a secretário do ministro, bem como sempre fora fiel a ela. E como era fiel! Nunca ela notou uma mancha de batom na camisa dele. Nunca o viu olhando para uma mulher na rua, ou dizer gracinhas insinuantes para quem quer que fosse. Suas amigas, e até as empregadas, diziam que homem respeitador como ele não existia. Então, realizariam uma grande festa para comemorar aqueles anos de amor e cumplicidade.
Coube aos filhos, que abonavam as convicções da mãe, a preparação do evento. Alugaram um espaço de festas que era um dos mais bonitos do Lago Sul. Contrataram um excelente bufê, uma banda de música popular muito conhecida na cidade e encomendaram um serviço de decoração. As Bodas de Coral dos pais cujos votos seriam renovados na Catedral de Brasília, deveriam ser perfeitas. Até uma equipe televisiva de jornalistas estaria presente para noticiar o acontecimento.
No dia da comemoração, logo cedo, Hélio recebeu um telefonema do amigo e deputado José Prudente, avisando que infelizmente não poderia comparecer ao evento por motivos pessoais.
Durante a missa, o padre que era amigo do casal, faz questão de ressaltar a importância daquele momento, o magno valor do sacramento matrimonial e como eram felizes por se manterem tanto tempo juntos, vivendo fielmente e honradamente.
Já no salão de festas, as músicas entoadas pela bela banda são apreciadas. Enquanto, uns dançam, outros tagarelam alegremente desfrutando dos comes e bebes que são servidos fartamente. O casal desfila de mesa em mesa cumprimentando a todos.
Meia-noite; a banda para subitamente e os três filhos do casal pedem silêncio, enquanto convocam os pais para o centro da festa, para mais uma vez serem homenageados. O filho mais velho relaciona as virtudes do casal e quando termina, solicita aos pais que digam algumas palavras. Neste momento a repórter do canal de televisão decide entrevistar os cônjuges. Pergunta à Maria como se sente naquele momento nobilitante? Recebe a resposta efusiva que não poderia estar mais feliz ao lado de um companheiro como aquele. Um grande homem, um grande pai, e etc.
A repórter, em seguida, dirige-se a Hélio e faz as mesmas perguntas, acrescentando:
— Foi difícil o senhor se manter fiel ao longo destes anos?
Tomando o microfone da mão da jornalista o marido de Maria, responde:
— Fiel? A senhora acha mesmo que existe algum homem que depois de trinta e cinco anos de casamento consiga permanecer fiel?
Maria, visivelmente constrangida interrompe, enquanto alguns convidados se mostram perplexos:
— Meu bem, acho que você não entendeu a pergunta.
— Claro que entendi. Ao longo desses anos tive alguns casos e uma amante que durou quase dez anos. Só você Maria para acreditar que eu estava sempre trabalhando até de madrugada. Que todo mês tinha que viajar com o ministro. – Alguém se ri sardônico, enquanto Hélio continua. – Sabe a Lindaura? Aquela sobrinha sua que você botou pra trabalhar lá em casa…? Dizendo que a estava empregando para ajudar, mas na verdade você queria era economizar? Deitei muitos dias com você pensando nela, até que acabei seduzindo a “caipirazinha”. Pena que depois foi embora com medo de você descobrir.
Os filhos tentam interromper, mas o pai continua:
— Vocês que estão aqui, acreditam mesmo que com um salário de funcionário público eu conseguiria morar no Lago Sul? Ter a mansão que tenho? Os imóveis que possuo? Os carros? As viagens? Pagar os colégios que paguei para meus filhos? Se consideram tudo isso honesto, são muito inocentes. Como secretário fiz muito lobby para várias empresas e recebi muito bem. Outra coisa! Nunca dispensei os dez por cento enquanto fui presidente da comissão de licitação do ministério.
Maria desmaia.
***
A Noiva
Conceição, após o plantão daquela noite no hospital Daher, sentia-se cansada. Aquela confusão com a senhora que teve um ataque cardíaco na festa de bodas foi um tumulto. O hospital se encheu de gente e atraindo até a televisão. Mesmo assim resolveu, às sete horas da manhã, passar no apartamento do noivo, aproveitando a carona da amiga Mônica que havia levado o filho de quatorze anos para ser atendido na emergência, e agora voltava para casa na Octogonal.
Quando o interfone tocou naquele domingo de manhã, Carlinhos disse um palavrão e se levantou para ver quem era. Uma ressaca louca lhe causava fortes enxaquecas e lhe moía o corpo, porém, quando reconheceu a voz da noiva se acalmou e mandou que subisse.
Conceição ao entrar no apartamento vai logo dizendo:
— Carlinhos, precisamos conversar. – ainda meio sonolento, o rapaz parece não entender as palavras tão enfáticas da noiva, que prossegue. – Essa situação não pode mais continuar.
— Calma Conceição! Deixe-me tomar um banho que já volto. – sem esperar a resposta se dirige ao banheiro, meio intrigado.
Depois do banho, nu e enxugando os cabelos com uma toalha, senta calmamente (como é de seu feitio) ao lado da noiva, e se dispõe a escutar:
— Diga Conceição. O que está acontecendo?
— Carlinhos…, quero terminar nosso noivado. E sem deixá-lo falar, continua: – Na realidade eu não aguento mais conviver com uma pessoa como você. Tão passiva, tão sem vontade de crescer, tão calminho, sempre aceitando tudo. Nós temos onze anos de namoro, e eu já estou com quase trinta, não posso ficar ligada a vida toda a um homem que não se decide. Além do mais, já não gosto mais de você. Outra coisa, não foi só naquele mês que demos um tempo no nosso namoro que fiquei com outro. Eu quando vou pra Natal, fico sempre com um vizinho do meu tio. No hospital tem um médico que pego, até durante o plantão.
Carlinhos, com os olhos marejados de lágrimas, tenta interromper:
— Ma… Mas, Ceiça eu te amo!
— Eu estou lhe dizendo que você é corno! Entendeu? Corno! E além de tudo um corno chorão. Não me procure mais!
Quando saiu do apartamento, os vizinhos escutaram a forte pancada da batida da porta.
***
O Aluno
Aos 14 anos de idade, Pedro Henrique era considerado por todos de uma inteligência ímpar. Contudo, mais do que inteligente, era esperto, porém, de uma esperteza sórdida. Desde cedo aprendeu a manipular os pais (principalmente a mãe), os vizinhos e os amigos. Na escola comandava a turma do fundão, e quando elegia um colega para zoar, ou um professor para perturbar, ai do escolhido.
No domingo pela madrugada, teve uma indisposição que o levou ao hospital. Pensou em se utilizar daquilo para não ir à aula na segunda-feira. Mas, surpreendentemente, acordou disposto a não perder a prova de ciências que seria aplicada naquele dia.
O professor Raimundo Siqueira era um daqueles mestres boa-praça, que apesar de lembrar um camundongo usando óculos, acabava contando com a complacência dos alunos, pela sua placidez. A quarta prova do ano seria aplicada naquele dia, e nenhum aluno estava desassossegado com isto, pois deveria ocorrer o mesmo que das outras vezes. Alguém, sutilmente, surrupiaria a prova que ele sempre preparava com antecedência, e guardava na velha pasta de couro desbotada. Gabava-se o incauto professor dos seus alunos, que sempre tiravam as notas máximas, deixando implícito que seria por sua capacidade como docente.
A prova de ciência seria aplicada no terceiro horário, logo após o intervalo. Quando Siqueira entra na sala, a algazarra é completa. Uns jogam bolas de papel, outros gritam e dão risadas, e o desenho de um falo está estampado no centro da lousa.
O docente, tentando impor-se, bate na mesa e ensaia um grito tímido que mal ecoa pela sala. É quando Pedro Henrique – lá do fundão – solta o berro:
— Calem a boca!
A turma que não esperava por aquilo cessa a barulheira, e calmamente Pedro começa:
— Professor, Dom Raton…, me dê licença pra chamá-lo assim, pois caso não saiba é assim que todos lhe chamam pelas costas. Eu queria lhe perguntar: o senhor é mesmo tapado, ou se faz? Não é possível que um professor não consiga com que a turma faça silêncio. Não é possível que um professor não perceba que é impossível que todos os seus alunos em quase seis meses, só tirem nota acima de nove. Professor, todos aqui colam! Cansamos de roubar suas provas daquela pasta encardida, e passar o resultado das questões pra todo mundo. – Faz uma pausa, para saborear o impacto das suas palavras, e apontando para um dos alunos, continua. – Sabe o seu aluno queridinho? O Jaime? É ele que fez esse desenho imoral no quadro. Sabe aqueles desenhos do senhor Ratão de óculos, de gravatinha borboleta como a sua e com dona Baratinha do lado? É ele que desenha. Professor, sua aula é tão ruim, que se não fosse o barulho que esse bando de mal-educados fazem, tinha muita gente dormindo.
E, por mais meia hora falou Pedro Henrique. Falou dos amigos e dos desafetos. Contou do assanhamento da Rosa que se julgava o máximo (o que ela queria? Dava corda pra todos os rapazes). Espicaçou o Valentin, que se fingia de bravo, porém, de valente só tinha o nome parecido. Provocou com suas verdades, mais de uma dúzia de colegas. Só parou quando falou do Manoel e levou um soco na boca.
***
O Caos
A manchete apareceu em todos os jornais do país:
EPIDEMIA DA VERDADE NA CAPITAL DO PAÍS
Estranhos acontecimentos em Brasília põem a população e o governo em estado de alerta. Segundo fontes seguras, mais e mais pessoas, a cada dia, não conseguem parar de dizer a verdade. Enquanto, o número de roubos e furtos diminuiu, o de homicídios aumentou. Bandidos confessam seus crimes e são presos. Várias famílias estão se desfazendo por conta disto. As brigas de casais atingem vasta parcela dos brasilienses. Parentes de todos os graus se digladiam. Servidores públicos, executivos, empresários e tantos outros confessam abertamente que são corruptos. Padres renunciam a sua fé. Espiritas confessam que são embusteiros. Pastores não querem mais aceitar o dízimo. As disputas nas empresas se generalizaram, e funcionários são demitidos. Senadores, deputados federais e distritais sumiram. Enquanto o caos se instala, o governo da cidade se esconde. Segundo alguns, com medo da febre da verdade, como vem sendo chamado o fenômeno. O governo federal proibiu a saída ou entrada de pessoas no Distrito Federal. Tropas federais e do exército cercam a capital do país. O presidente que se encontrava viajando, agora despacha do Rio de Janeiro. Nos outros estados, muitos estão preocupados, entretanto, existem aqueles que não acreditam, e acham que tudo é um golpe dos militares para assumir o governo do país novamente.
A Bonança
Manchete do Correio Braziliense duas semanas e meia, depois:
BRASÍLIA VOLTA AO NORMAL, FEBRE DA VERDADE FOI EMBORA
Analistas, médicos, psicólogos, psiquiatras e membros do governo, estão reunidos há dois dias para discutir a chamada febre da verdade, que como misteriosamente apareceu, foi embora. Várias hipóteses foram levantadas, inclusive a de um possível ataque terrorista, que foi descartada pela ABIN. Depois do caos que se tornou a cidade, a vida volta normal nela.
Muitas pessoas vão ter que se explicar. Entre elas, membros do governo, do Congresso e da Câmara Legislativa. Às pessoas comuns, só resta esperar que seus familiares e amigos, as perdoem das indiscrições e do mau-caratismo. Quanto aos homens públicos, e aos demais que confessaram suas patifarias, esperamos que sejam punidos à altura.
***
Dois anos depois, só restava aos brasilienses lembrarem-se do famoso dito popular dos portugueses no século 19: “está tudo como dantes no quartel d’Abrantes”!
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