Por Gil DePaula
Dedico esta história a todos aqueles que têm dificuldades de locomoção e, infelizmente, não possuem seus direitos respeitados.
BOLAS E RODAS
Abraços, pulos, socos no ar, dancinhas, era apenas a extravasão daquele momento único, e cada um o fazia do seu jeito. O que eu sentia, naqueles instantes, somente podia ser comparado ao orgasmo. A torcida ensandecida pulando, gritando: Gol! Gol! Gol! Kael! Kael! Kael! O mundo-bola ficava aos meus pés, e eu era o Rei. Majestosamente, eu desfilava pelo mundo-verde-retangular, levando o time do B… Futebol Clube às primeiras colocações no campeonato brasileiro de futebol.
A imprensa já havia se rendido a mim, e exigia que o técnico da seleção brasileira me convocasse para os jogos das eliminatórias sul-americanas. Meu empresário, volta e meia, trazia noticiais de que esse ou aquele clube estrangeiro, especulava sobre a minha contratação.
Alguns restaurantes e bares dispensavam a conta que eu deveria pagar. E as mulheres? Ah! As mulheres eu pegava geral. Morenas, negras, loiras. Geralmente, nas baladas de terceiros ou nas que eu promovia. Bebia e muito; vodca, uísque, gim e às vezes cerveja. Drogas não! Criado na Candangolândia vi muito irmão se danar. Enveredavam pelos caminhos do crime, ou viravam zumbis consumidos pelas drogas. A opção era a cadeia ou a morte.
Minha mãe pegava pesado na questão dos estudos, mesmo assim não conclui o segundo grau. Com raiva mesmo ela ficou quando eu terminei o namoro com a Rayane. Quer dizer; quando a Ray terminou comigo. Não aguentou mais as minhas farras e infidelidades. Eu pouco liguei!
Dei uma garibada no barraco da minha mãe e mudei de lá. Comprei uma bonita e confortável casa no Park Way e as farras rolaram soltas. Nunca fui bobo; o condomínio todo era convidado e adoravam as minhas festas.
O imprevisto aconteceu naquele sábado-felicidade-tragédia. Antes, Carlos Figer, meu empresário, me trouxe a novidade: segunda-feira próxima, dirigentes de um grande time europeu desembarcariam em Brasília para fechar um contrato de transferência do meu passe. As bases estavam todas acertadas, somente faltava o meu aval. Para comemorar resolvemos fechar uma boate no Lago Sul, com convidados pra lá de especiais. Entretanto, o sábado-felicidade-tragédia trouxe o moinho para minha vida.
O “Mundo é um moinho” é uma música para a qual Cartola escreveu versos pungentes, com intenção de aconselhar a sua filha, a partir do desejo dela de sair de casa para se prostituir, que o mundo é um lugar perigoso. O moinho é a máquina pesada da vida, que não hesita em triturar os sonhos, que não apieda as ilusões de quem, ainda muito jovem, é incapaz de avaliar a gravidade das consequências de suas próprias decisões.
O sabor em minha boca era amargo. O vigor físico que sempre possuí estava inerte. Meus neurônios, de alguma forma que eu não entendia, haviam engordados, pois minha cabeça pesava toneladas. Tubos saiam do meu nariz. Gritei! Meus ouvidos receberam como resposta um sussurro. Alguém se aproximou. Voltei a dormir.
Quando acordei novamente, vi o rosto da minha mãe. O semblante dela era triste, os olhos estavam inchados e suas feições trazia o desespero estampado. A última coisa que eu recordava, é que eu iria para a Europa, jogar em um grande time.
E o mundo-moinho-verdade a triturar: “você sofreu um grave acidente!”. “você ficou em coma por nove dias!”. “Você fraturou a quinta vértebra cervical, com uma grave lesão na coluna, “você não vai poder jogar bola!”, “Você Não Pode Mais Andar!”
Minha mãe contou para mim o que ela soube somente depois. Depois da comemoração do que não aconteceu. Bebi! E pra variar muito! Quando bebo fico atrevido. Posso dizer até mesmo temerário. Uma das moças que estavam comigo no carro morreu. A outra, escapou com poucos ferimentos. Às cinco horas da madrugada descemos o Eixão num pega vertiginoso com outro veículo. Enfiei o meu nas paredes do buraco do tatu, abaixo da rodoviária de Brasília.
No começo parecia que eu estava dentro de um pesadelo do qual eu queria acordar. Mas a realidade-moinho triturava incontinente as poucas ilusões que me restaram. Eu estava paraplégico! Fiquei dias deitado com um colar cervical, que limitavam ainda mais os meus movimentos.
Durante as primeiras sessões de fisioterapia, realizaram vários testes de sensibilidade e agulhas, que eu não sentia, foram enfiadas em mim. Me viravam na cama de duas em duas horas, para evitar as escaras. Meu sono era entrecortado por pesadelos e por uma coceira infernal, que não me deixavam dormir, fosse dia ou à noite. Às vezes, eu pedia a alguém que estivesse ao meu lado, que coçasse alguma parte do meu corpo. Duvidei que Deus existisse! Graças a minha mãe estar ao meu lado, eu não entrei em pânico. Minto! Chorei muito.
Recusei a receber várias visitas. Eu tinha vergonha que me vissem no estado lastimável em que me encontrava.
Depois de muita insistência, conseguimos uma vaga no Hospital Sarah Kubitschek. Então, chegou o dia do mundo-cadeira de rodas.
Era necessário reaprender. Reaprender a segurar o garfo, a pentear o cabelo, a escrever, a cagar, a mijar e a entrar no carro, sempre carregado por alguém. O mundo-cadeira de rodas, dali por diante, seria sempre o meu.
No começo, muitos solidarizaram-se comigo. Depois, e até por culpa minha (acho) fui esquecido. Para minha desgraça, meu contrato com o clube de futebol encerrou-se dois meses depois do acidente e, logicamente, eles não renovaram. Meu empresário partiu em busca de novos talentos futebolísticos. Meus antigos amigos da Candangolândia não me procuraram, pois depois da fama, eu os havia abandonado. Os amigos que arrebanhei no auge da carreira também não, e as mulheres não queriam saber de um aleijado.
Como nunca economizei, acabei por vender a casa do Park Way para poder continuar o tratamento médico e comprar um novo carro adaptado para deficientes. Voltei a morar com minha mãe.
Um dia a Ray veio me visitar. Confesso que percebi que nunca a havia esquecido. Quando tentei lembrar do nosso namoro, ela, sem delongas, me disse que estava casada. Quando ela foi embora, o meu mundo-cadeira de rodas tornou-se ainda mais vazio.
Mesmo com o meu carro adaptado para as minhas necessidades, as dificuldades que eu enfrentava de locomoção eram enormes. Ruas esburacadas, rampas de acesso inexistentes, gente mal educada que não respeitavam as vagas de carros reservadas para cadeirantes.
Da mesma forma que algumas pessoas, o deficiente se torna invisível. Ninguém tem tempo ou paciência para conversar com pessoas que apresentem dificuldades físicas. Minha vida tornou-se o mundo-revolta-tentativa de superação.
Aos poucos fui me ajeitando. Para ganhar alguns trocados, enquanto algo melhor não aparecia, comecei a vigiar carros na Feira dos Importados de Brasília.
Em um dia de sábado, em que eu procurava conduzir alguns carros para as vagas disponíveis, minha cadeira de rodas travou no meio da pista. Um impaciente motorista começou a buzinar freneticamente e a gritar comigo. Perdendo a paciência, eu lhe mostrei meu dedo indicador estendido, em um ato que não deixava dúvida do que representava. Foi então que ele berrou:
– Sai daí macaco aleijado!
A partir daquela agressão verbal, meu mundo-equilíbrio se desfez. Destravando a cadeira de rodas, eu jogo meu veículo contra o dele e soco os vidros. Ele desce do carro e chuta o meu. Eu caio da cadeira de rodas. Ele me chuta a cara. Uma, duas, três vezes. Eu rio. Na realidade eu gargalho. Ele não entende e para com as agressões. Ele é negro como eu!
E, afinal, o que são uns dentes e um nariz quebrados, para quem já foi moído pela vida? Risos, risos, risos… e choros!
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Gil,
Obrigado pelo conhecimento transmitido sobre “Mundo é um moinho!”, mas acho que está sobrando, no mais sua narrativa é boa, entendo que se trata do seu “Projeto Universo do Homem Negro”, mas a história cabe também para um homem branco!
Wan Morais
Agradeço o comentário no blog Wan Morais.
O mundo é mesmo um moinho!
Obrigado Rogério, pelo comentário no blog do Gil.