À sua passagem, os cães ladraram fortemente, mas nem a insistência dos latidos perturbou aquele homem de uma esqualidez quase cadavérica, que nem o terno surrado, enfeitado por um arremedo de gravata, conseguia esconder. A face sugada e macilenta era “emoldurada” por barbas e cabelos longos, desgrenhados e sujos. Os sapatos tinham o direito aberto na frente, e no esquerdo faltava o salto, o que dificultava entender se a estranha figura manquitolava devido a eles ou por algum problema físico. As unhas das mãos eram grandes, tinham os cantos roídos e pretos. Se alguém ousasse encostar nele, perceberia o odor azedo que emanava do seu corpo e o mau hálito, devido à bebida e às bactérias que se acumulavam em sua boca.
Nelson Sobral (este era o nome do infeliz) não possuía amigos ou sequer um lugar para cair morto. Se havia algum parente, já não se lembrava. Porém, nem sempre foi assim. Voltemos no tempo, à sua juventude nem tão longínqua:
1963. Nelson Sobral, gaúcho de Santana do Livramento, aos vinte anos, depois de passar a infância e a adolescência no Rio de Janeiro, chega ao Distrito Federal. Vem para Brasília não porque sua vida não está dando certo na capital carioca, mas muito mais pela curiosidade de ver a cidade nascente e pelas oportunidades que espera ter. Irá trabalhar e morar com um tio, irmão de seu pai, que possui um próspero comércio de tecidos na Cidade Livre (hoje Núcleo Bandeirante).
Nelson possui sangue boêmio, adora as mulheres e é fascinado pelo jogo em suas diversas modalidades. No Rio de Janeiro, era vigiado constantemente pela mãe, que sabia das incursões do filho pelo mundo das jogatinas, e o desaprovava. Julgava-se um homem de sorte e estava convencido de que ela lhe sorriria. Trabalhar com o tio é apenas uma maneira de viabilizar o que realmente gosta: correr riscos.
Logo mostrou-se um vendedor ladino. As senhoras clientes se encantavam por sua figura morena de um metro e oitenta e seis de altura e um bigode à la Clark Gable. O sorriso confiante luzia sempre seguido por uma lábia impecável, que lhes atiçava o desejo de comprar até o que não necessitavam. Sua elegância, traduzida em ternos baratos, não comprometia o arremate. Como, além do salário fixo, ganhava comissão, poderia, facilmente, fazer um pé-de-meia, possibilidade nunca aventada.
Além dele, do tio e da mulher, trabalhavam na loja mais dois vendedores e um rapaz que era misto de contínuo e faxineiro. Abriam às dez horas da manhã e fechavam entre as vinte e vinte e uma horas, dependendo da clientela.
Após trancarem as portas, iam para o bar do “Seu” Ferreira esquentar a garganta com uma Pitú ou esfriar a cabeça com uma Brahma, dependendo do tempo ou do gosto do apreciador. Entre um gole e outro, iniciavam os jogos. Primeiramente, eram palitinhos valendo uma cerveja ou um gole de cachaça; depois, acrescentaram o dominó. Quando chegaram às cartas, já apostavam alguns cruzeiros, e a quantidade de participantes só aumentava. Durante essa evolução, apenas uma coisa nunca mudou: Nelson sempre ganhava. Entretanto, como sempre se mostrava generoso com os amigos (ora pagava uma rodada para todo mundo, ora emprestava dinheiro que se esquecia de cobrar e, dependendo do caso, mais graça fazia e avisava que os cobres estavam sendo dados), todos queriam sua amizade e apregoavam sua sorte e o bom camarada que era.
Na zona de meretrício da Cidade Livre, fazia o maior sucesso com as raparigas, pois não regateava preço. Às vezes, ia para o quarto com uma ou mais garotas, o que lhe valeu também a fama de garanhão.
Em alguns meses, deixou de morar na loja e foi para um hotel. Pouco tempo depois, adquiriu uma Vespa, e a qualidade dos ternos melhorou.
Apesar dos suspiros das moçoilas casadouras, apaixonou-se mesmo por Carmem, cantora de cabaré e cigana, especializada em cantar e dançar o tango. Mas Carmem era apaixonada por e propriedade de Araújo, gigolô conhecido.
Dois anos depois, apostando numa rinha de galos, descobriu a existência de um dos poucos cassinos clandestinos de Brasília. Um dos apostadores, conhecedor de sua fama, lhe segredou que na W3, 508 Sul, próxima das lojas Bi-Ba-Bô, a jogatina corria solta. Aconselhou-lhe despreocupação (caso tivesse interesse), visto que autoridades e até militares frequentavam e se esbaldavam no jogo. Bastava ter cacife suficiente, porque as apostas poderiam chegar a milhões de cruzeiros. Nelson tornou-se frequentador
Como nunca, a sorte sorriu para Nelson Sobral: ganhou no jogo uma casa na 712 Sul, comprou um Sinca Chambord com motor V8 tufão de 110 hp, realizava festas regadas a champanhe que duravam três dias e amava as mulheres por serem mulheres. Viajava com generais e conheceu Grande Otelo e Oscarito. Agora era Sua Majestade, O Jogador.
Por essa época, Araújo foi preso. Cortou uma das mulheres que aliciava com uma navalha. A infortunada teve a cara retalhada pelo gigolô. Quando soube, o rei sorriu.
Sem pensar duas vezes, procurou Carmem e, sem meias palavras, disse que a queria. Contudo, a moça, apaixonada pelo cafetão, afastou suas pretensões. Nelson, fazendo uso de suas habilidades, barganhou e lhe afiançou que possuía amigos influentes capazes de interceder a favor de Araújo. Além do mais, se necessário, contrataria um bom advogado. Garantiu que, antes de um mês, tiraria o proxeneta da cadeia. A cigana aceitou, mas deixou claro que ele, apenas, desfrutaria da sua intimidade, e não do seu amor.
O delegado da delegacia de polícia da Cidade Livre, Ednardo Marçal, não só devia favores a Nelson Sobral, mas também dinheiro que nunca foi cobrado. Quando o jogador lhe fez o pedido, viu a oportunidade de retribuir os adjutórios. Combinados, foram ter com o malandro e impuseram-lhe condições a fim de que não procurasse mais Carmem e, principalmente, não se intrometesse no relacionamento do jogador com a cantora. Garantiu-lhe o policial que, se não cumprisse esta condição, voltaria à cadeia e receberia o tratamento adequado pela falta. Como compensação, além da liberdade, levaria Cr$ 30.000,00 pagos por Nelson. O gigolô, empenhando sua palavra, aceitou com um sorriso de satisfação.
Carmem, cigana de palavra, vendo seu homem liberto, entregou-se a Nelson. No começo, recusava-se a aparecer publicamente com o rapaz, mas, como Araújo não a procurou mais, passou a circular com o novo amante. E, sem se esquecer do antigo, adorou a vida de luxo. Gostava de se vestir bem e amava os vestidos vistosos e coloridos que passou a possuir, bem como as belas joias que, volta e meia, recebia de presente.
Nelson sabia que não era amado por Carmem, e isso não lhe preocupava. Afinal, se, de alguma forma, a comprou, era o seu dono. Seria apenas mais um dos amores entre muitos que pagou. Estava feliz em tê-la ao seu lado, e isso lhe bastava.
A felicidade sentida aguçou seu lado esbanjador. Além dos mimos oferecidos à amante, gastava a rodo. Ele proporcionava, de duas a três vezes por mês, suntuosos banquetes aos amigos ou meros conhecidos. Deu dinheiro suficiente ao tio para que abrisse mais duas filiais da loja Rainha do Cerrado: uma em Taguatinga e outra na W3 Sul. A alguns parentes afastados que lhe visitaram uma única vez, emprestou alguns milhares de cruzeiros que, certamente, nunca receberia de volta. Viajava todo mês a alguma cidade do litoral para velejar com amigos. E bebia, e jogava como nunca. E batia carros e arranjava confusão. E Carmem acabou se tornando apenas mais um objeto a decorar sua vida.
Numa quarta-feira cinzenta, acordou cheio de dores de cabeça; a ressaca se apossava dele. Tomou um Sonrisal e duas aspirinas, procurou por Carmem e não a encontrou. Percebeu uma das portas do guarda-roupa da moça aberta, foi verificar e notou que o compartimento estava vazio. Abriu as demais portas, e o mesmo se deu. Procurou a caixa de joias e não a encontrou. Entendeu que Carmem havia se evadido do seu mundo encantado, suas ilusões, sem se dar conta de que ela era o seu amor de perdição. Pouco tempo depois, soube que Araújo desaparecera sem deixar rastros.
Agora bebia cada vez mais, jogava ainda mais e perdia. Como todo jogador, não percebeu que a maré virara e acreditava na reviravolta. Primeiro foram embora os milhares de cruzeiros que possuía em casa. Depois, os milhões que tinha no banco. Parecia que a sorte, que sempre lhe fora companheira fiel durante tantos anos, acompanhou Carmem e também lhe abandonou.
E a maré de azar no jogo continuou lhe açoitando até quebrar seus bens materiais. Foram-se os carros, o barco, os imóveis e até a velha Vespa, guardada como relíquia. Tornou-se alcoólatra, e os amigos passaram a evitá-lo.
Por algum tempo, contou com a benevolência de Alfredinho, o antigo contínuo das lojas Rainha do Cerrado, que o abrigou em sua casa. Mas, não resistindo aos modos do agora plebeu Nelson Sobral, acabou por expulsá-lo.
O tio, de cara, avisou que não queria saber de cachaceiros, que ele tomasse jeito e poderia voltar a trabalhar numa das lojas.
Nelson Sobral, que foi plebeu, tornou-se rei e voltou a ser plebeu. Agora era um pedinte, morador de rua. Emagreceu, e os cabelos compridos e desgrenhados não se mostravam brancos porque a sujeira escondia a cor. Há meses usava o último terno que lhe restara. Banho, não se recordava quando tomou o derradeiro. A cachaça, que sempre conseguia, era o seu alimento. Vagava pelas ruas da Cidade Livre, muitas vezes sendo escorraçado.
Naquela noite estrelada, antes que os cachorros o atacassem, ouviu ao longe a voz grave e melodiosa de seu homônimo, Nelson Gonçalves, a entoar os versos do tango “Vermelho 27”.
Ao estatelar-se com a cara no chão, lembrou que, muitas vezes, atirou ossos àqueles mesmos cães.
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