“Feliz Natal”
Baseado em uma história verídica
Era uma vez um barraco de madeira tão pobre quanto os milhares de outros espalhados pela cidade-satélite de Taguatinga, ocupado pela minha família, uma família de rotos. Nasci em Monte Gordo na Bahia, bem como meus pais, minha irmã e meu irmão que nasceram antes de mim. Os dois mais novos deram sorte, foram paridos num hospital, o São Vicente de Paulo, na mesma cidade, que alguns anos depois, seria alcunhado de “Hospital dos Doidos”, pois se tornaria exclusivo para atendimentos a doentes mentais.
Corria os anos 60 e, eu, meu pai, minha mãe e mais quatro irmãos, que em breve seriam cinco, ocupávamos aquele lugar miserável de chão de barro batido, de tábuas de madeira velhas rachadas e mal colocadas que deixavam a poeira e o frio da noite entrar sem nunca pedir licença. A chuva quando chegava, do mesmo modo não fazia cerimônias e, numa cantiga monótona, embalava-nos à noite ao se encontrar com o telhado de folhas de zinco que nos cobria precariamente.
Dos anos 50 até grande parte dos anos 70, o clima era rude e imperioso. O frio começava em maio e perdurava por mais três ou quatro meses. Mas, não era um frio qualquer, ele tinha por companhia a seca e, como consequência, a poeira, que castigava, principalmente, a pele e os pulmões. Pneumonias, asmas, gripes e peles rachadas que chegavam a sangrar eram sintomas muito comuns entre os mais pobres.
Nesses períodos, minha mãe sempre arranjava algum pano de flanela e costurava pijamas que nos fazia usar. Meu pai conseguia jornais velhos e papelões que enfiava nas frestas das paredes.
Logo depois, vinham as chuvas. Às vezes, chovia quarenta dias sem parar. Era comum a “chuva de gelo”, assim chamada por causa dos granizos que caiam abundantemente. Trovões ribombavam e raios, desgraçadamente, se abatiam sobre os barracos, rede elétrica e pessoas. Vi muitos daqueles precários lares flamejarem. Às vezes, o raio provocava o incêndio, outras vezes o descuido com uma vela. A lama se tornava abundante e meus pais corriam desesperadamente atrás de um calçado chamado galocha. Uma espécie de bota de borracha que lhes ajudava a proteger os pés e parte das pernas. A criançada fazia das enxurradas um parque de diversões. Todos demonstravam nos rostos a satisfação de estar molhados e sujos. Eu gostava de voltar para casa, ser banhado por mamãe e se tivesse uma sopa rala de verduras com um pedacinho de carne para me aquecer, minha satisfação era completa.
Meu pai era ajudante de pedreiro. De segunda a sábado fizesse sol ou chuva, invariavelmente às cinco e meia da manhã, lá estava ele com a velha japona surrada, marmita debaixo do braço, saindo de casa para pegar o caminhão de transporte da construtora que o levaria até o local da obra. Em todos aqueles anos que o vi diariamente na mesma rotina nunca reclamou por ter que trabalhar. Dizia com orgulho: filho meu não passa fome! Promessa que infelizmente não pode cumprir.
Minha mãe além de cuidar da casa, lavava e costurava para fora. Quando meu pai morreu vítima da doença de chagas, ela deu de presente para mim e meu irmão mais velho uma caixa que mandara fazer. Dentro dela tinha uma lata de graxa marrom e uma preta, um pincel, duas escovas de sapato e um pedaço de flanela. Ele nos olhou afagando nossas cabeças e não precisou dizer mais nada.
Festas nunca celebramos. Mas, no Natal, eu adorava ir até o centro de Taguatinga para ver a caixa d’água enfeitada, a árvore que a administração montava, as luzes e as bolas coloridas, os enfeites de Papai Noel e de anjinhos. Meu irmão e eu ficávamos extasiados quando o autofalante tocava as músicas natalinas. Um percebia no outro a felicidade estampada em largos sorrisos, e por um momento éramos felizes. Principalmente quando o autofalante entoava:
Natal, Natal das crianças!
Natal da noite de luz!
Natal da estrela-guia!
Natal do Menino Jesus!
Blim, blão, blim, blão,
Blim, blão…
Bate o sino na matriz!
Papai, mamãe rezando
Para o mundo ser feliz!
Blim, blão, blim, blão,
blim, blão…
O Papai Noel chegou!
Também trazendo presente
Para a vovó e o vovô
Nunca tivemos quem nos trouxesse um presente. Cedo descobrimos que aquele senhor vestido de vermelho com longas barbas brancas, corado e suarento que ali se apresentava nunca seria o Papai Noel dos miseráveis, ou melhor, tivemos a certeza que os miseráveis não têm Papai Noel.
Naquele momento tomei uma resolução: um dia me vestiria de Papai Noel e distribuiria presentes, principalmente para os mais necessitados.
Os anos foram se passando. Os barracos, paulatinamente, substituídos por casas de tijolos, a rede de esgoto e o asfalto chegou a todas as ruas, a rede elétrica se estabilizou. A avenida principal de Taguatinga foi tomada pelo comércio.
Eu engraxei muitos sapatos, vendi jornais, fui cobrador de ônibus, garçom e, provavelmente, outras coisas que já não me lembro, até que um dia meu irmão mais novo sugeriu que comprássemos um moinho para fazermos fubá: Presta atenção mano! Dizia ele. Aqui em Taguatinga só tem aquela fábrica Aurora que faz fubá. Se comprarmos um moinho, vamos fazer a farra. Pobre tem que comer comida barata, e aqui no Distrito Federal o que não falta é pobre. Um quilo de fubá não sai nem por mil cruzeiros e milho tá mais barato ainda.
O Lote em que morávamos tinha mais de trezentos metros quadrados, há alguns anos ajudamos nossa mãe a construir uma casa na frente, ficando o antigo barraco atrás e foi nele que montamos nosso primeiro empreendimento. Nas chácaras, ao redor da cidade, viviam diversos chacareiros que plantavam e vendiam o milho nas feiras. Depois de adquirirmos o moinho e outras máquinas que achamos necessárias, procuramos esses pequenos agricultores e fizemos um acordo com eles. Inicialmente, pagaríamos parte do milho comprado com o próprio fubá e parte com o lucro das vendas. Começamos a vender para os mercadinhos em sacos de cinquenta quilos. O que nos permitia oferecer um preço menor do que o oferecido pela fábrica Aurora. Logo, estávamos ensacando porções de quinhentos gramas e um quilo. Foi um sucesso e mudou a minha vida e a da nossa família.
Algum tempo depois, o shopping Conjunto Nacional de Brasília, após amargar um período ruim, começou a ganhar a confiança dos clientes brasilienses e a se consolidar como uma das melhores alternativas para os consumidores, já que em apenas um lugar as pessoas teriam a opção de comprar os mais variados produtos. O período do natal novamente se aproximava e como parte de sua estratégia comercial resolveram colocar um Papai Noel numa das praças térreas.
Nos últimos anos, a boa vida me deu uns quilos a mais e me tornou uma figura rechonchuda. Eu era amigo do administrador do Conjunto Nacional, procurei-o e lhe contei do sonho de menino de distribuir presentes vestido de Papai Noel. No começo ele estranhou a solicitação, mas além dos laços de amizade que nos prendiam me devia alguns favores e acabou por concordar. Combinamos que eu começaria na sexta-feira vindoura.
No dia aprazado, às dez horas da manhã, lá estava eu paramentado de Papai Noel. Carregava um saco cheio de guloseimas para distribuir entre as crianças e me sentia feliz. Colocaram uma bonita poltrona onde eu deveria sentar e esperar a garotada. Mas um estranho fato aconteceu, as pessoas com seus filhos ou não, passavam por mim e não paravam. Alguns olhavam de longe demonstrando curiosidade. Outros apontavam para mim e cochichavam. Apenas duas crianças se aproximaram e receberam os doces.
No sábado, não desanimei e voltei ao Conjunto Nacional. Porém, a mesma história se repetiu. Em um determinado momento escutei uma senhora dizer para o marido: Será que esse homem não se enxerga!
Às três horas da tarde fui chamado ao escritório da administração. Logo estranhei o grupo de clientes amontoados ali. Cheguei a escutar um homem falar: O senhor tem que dar um jeito nessa situação. Eu nunca vi coisa mais ridícula do que aquilo. Quando me viram calaram.
O meu amigo administrador, cortesmente, me fez entrar em sua sala e fechando a porta me disse: Vou ser sincero com você. Infelizmente você não vai poder continuar com esse papel. Disse apontando para mim. Nossos clientes não querem um Papai Noel negro.
Então me dei conta, que além de Papai Noel não ser para todos… Ele tinha cor.
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