Algodão-Doce

Por Gil DePaula

Quando eu a conheci de verdade tinha apenas quinze anos de idade. E foi como se estivesse sendo arrastado por um tufão. Logicamente, o menino de dois anos que estava guardado dentro de mim não poderia lembrar-se dela. Mas eu sempre conheci a sua alma. Minha mãe, talvez para apaziguar um pouco da saudade que sentia, nos contava a história dela. A história que também pertencia a minha mãe, filha mais velha de uma prole de cinco filhos, todos criados em um barraco que mal cabiam três pessoas.

Quando o fusca dirigido por meu pai, carregando em seu teto uma televisão para presenteá-la, parou à sua porta, ela a todos ignorou, apesar da visível excitação que seus trejeitos demonstravam. Praticamente me tirou do carro, me deu um longo abraço e me arrastou pelas mãos, entrando na casa do primeiro vizinho que encontrou e anunciando a minha presença disse: Dona Rosinha! Dona Rosinha! Olhe! Olhe! É meu neto! Que acabou de chegar de viagem. E assim fez em mais três casas. Acho, que nunca me senti tão amado como naquele momento.

Anos depois, os acontecimentos daquele dia permaneciam nitidamente em minha cabeça. Porém, a imagem dela se apresentava um pouco desbotada. Ainda me lembrava da sua pele negra, que brilhava quando os raios de sol a encontrava, dos cabelos embranquecidos pela lida e pelo tempo, que me lembravam o algodoeiro e seus belos tufos, e me perguntava se o meu nariz havia puxado ao dela, sem me recordar de como ele era. Às vezes, eu ficava aflito e com sentimento de culpa pela falta da lembrança completa de sua imagem. Afinal, amor não pode ser pago com esquecimento.

Naqueles poucos dias de convivência, aprendi mais sobre a vida, sobre o sofrimento e de como ser feliz, apesar das dificuldades, dos que nos meus quinze anos vividos.

Minha avó já não trabalhava para os outros. Não mais se preocupava em chegar cedo na lavanderia coletiva para garantir o seu lugar diante de um tanque de lavar roupas, alimentado pela água da fonte próxima.

O filho morto cedo na meia-idade lhe deixou como presente e hóspedes, a mulher, nove filhos, incluindo um fruto de suas infidelidades.

A casa, que havia recebido alguma reforma, ficava pejada (principalmente com a nossa presença), mas todos se ajeitavam e havia um respeito quase religioso prestado às visitas.

Engraçado, é que ela parecia não carregar o peso da idade. Todos os dias, como se um clarinete militar tocando a Alvorada a despertasse dos seus sonhos, ela se levantava às cinco horas e trinta da manhã, fazia a higiene pessoal, colocava o bule no fogo, arrumava a mesa da cozinha, e intimava um dos meus primos a comprar o pão na bodega a cem passos da casa. Acordava primeiro os que deveriam trabalhar fora, incluindo a nora. Continuava a lavar e passar roupas, mas somente as da casa.

Eu gostava quando a via ligar o rádio e graciosamente dançar, requebrando as cadeiras, que somente mais tarde me dei conta de sua sensualidade.

Mãe solteira. Mãe da minha mãe nos anos 30. Somente, muito tempo depois, aquilatei a opressão que na época, lhe desabou nos ombros. Entretanto, sempre conceituei meu avô como um canalha fujão.

A desdita, muitas vezes acompanhou minha avó durante seus longos anos. A fome, o trabalho pesado, amantes que sempre terminavam por abandoná-la. Ainda assim, nada se comparou à morte de dois de seus filhos ainda jovens. Um deles, vítima de um mal súbito.

Contudo, o ferro que deixou sua alma em brasa, foi a morte de uma das filhas assassinada aos dezesseis anos pelo namorado, quando a descobriu grávida. Antes dela mesma fazer a sua passagem, carregou a dor de ver três filhos serem enterrados.

Apesar disso, aquela senhora dos cabelos de algodão-doce exuberava felicidade. Felicidade sugada e ampliada dos pequenos momentos felizes que batiam à sua porta como se fossem mimos para agradá-la, tal qual, a nossa visita.

Seu sorriso era largo, cheio de dentes e sua risada, às vezes escandalosa, contagiava quem estivesse perto. Quando estava brava, seus beiços dilatavam, e um “cabrunco” inevitavelmente era dito. A partir daquele momento estava explícito, que ninguém se aproximasse dela.

Eu lembrava que, às vezes no final do dia, quando o horizonte avermelhava pré-anunciando a noite, ela sentava em um banco de pedra na frente da casa e nos contava histórias da infância dela. Entre uma e outra, seu olhar se doía e se perdia na fogueira avermelhada do céu. Era provável, que naquela brecha, suas reminiscências fossem mais dolorosas.

Prestes ao meu casamento enviei a minha avó o convite cerimonial com pouca esperança de que ela comparecesse. Minha avó nunca havia abandonado as terras sergipanas. Contrariando a minha pouca fé e para minha felicidade, ela nos alegrou com a sua presença, chegando com alguns dias de antecedência, demonstrando mais uma vez o amor nutrido por mim, que foi forte o bastante para vencer seus medos de uma viagem de avião. Aproveitei para garantir que não mais esqueceria a sua imagem, e a fotografei várias vezes. Imagens que guardo até hoje.

Durante a cerimônia rios desabaram dos seus olhos e a correnteza foi embalada por soluços de afeto, que a todos contagiaram. Minha mãe, não se fez de rogada e a seguiu nos vales das lágrimas de alegria.

Há mais de vinte anos, minha avó está junto ou mais perto dos anjos. Há mais de vinte anos, a saudade em momentos pontuais invade o meu peito. Às vezes, sinto que careço de sua proteção. Nesses momentos, elevo meus pensamentos ao alto e em sussurros lhe digo: Me abençoe, vozinha querida!

Dedicado a minha querida avó Erundina Alves, ou simplesmente, Morena!

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